Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania - III Ciclo de Webconferências
PDCC - III Ciclo de Webconferências
 
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Reflexões sobre a (in)adequação do Direito Ambiental para a Proteção do Patrimônio Cultural

1ª Webconferência – 21/02/2018

Marisa Damas:

Olá, boa noite, é com satisfação que nós iniciamos nosso III Ciclo de Webconferências Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania, um projeto de extensão que decorre das atividades da Especialização Interdisciplinar em Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania, desenvolvido em parceria entre a UFG- Universidade Federal de Goiás por meio do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos e a Universidade de Fortaleza, UNIFOR, por meio do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais. Eu sou Marisa Damas, coordenadora do projeto de extensão pela UFG. Pela UNIFOR, participando conosco em Fortaleza, o professor Humberto Cunha, para o qual eu passo a palavra.

Humberto Cunha:

Muito boa noite a todos! O Allan é aluno do doutorado aqui da Universidade de Fortaleza em parceria com o CIESA de Manaus. Ele é advogado da União e vai contar uma experiência que é muito interessante, de proteção do patrimônio cultural no Estado do Amazonas, em que se usa tombamento, por exemplo, para bens naturais, como o encontro dos rios, que é tombado. Ele é cearense, embora desenvolva seu trabalho de advogado da União no estado de Amazonas. Acho que nós devemos aproveitar o Allan. Queria apenas registrar e agradecer a todos que estão conectados, fazendo uma menção específica ao Yussef e, dentro de poucos instantes, entrará conosco a partir de Minas Gerais, o professor Carlos Magno Paiva, que é um dos autores que serão referenciados aqui no trabalho do Allan. Então, por favor, Allan, assuma aqui o seu papel.

Allan Carlos Moreira:

Olá! Boa noite a todos. Quero dizer a minha enorme satisfação por ter recebido o convite do prof. Humberto Cunha e da profa. Marisa para estar neste encontro, discutindo um tema que julgo de extrema importância. Fiz minha graduação em direito na UNIFOR e o Mestrado em Direito Ambiental na UEA. No mestrado eu estudei o patrimônio cultural a partir do Direito Ambiental e, hoje no Doutorado, eu estudo o patrimônio cultural a partir dos direitos culturais. O tema desta webconferência é uma oportunidade para questionar alguns pontos e fazer algumas reflexões acerca da adequação ou inadequação do Direito Ambiental para a proteção do patrimônio cultural.

A nossa apresentação é iniciada com a ajuda de imagens que objetivam representar de forma visual a discussão acerca da adequação ou inadequação do Direito Ambiental. Vamos partir de dois objetos, dois bens culturais que são protegidos pelo tombamento com o objetivo de discutir se para proteger esses bens é possível a utilização do um mesmo instrumental jurídico pertencente ao Direito Ambiental, ainda que esses bens possuam naturezas distintas.

Nas imagens projetadas no slide temos o Encontro das Águas, o encontro dos Rios Negro e Solimões,  um bem natural situado na cidade de Manaus/AM e que se encontra tombado pelo IPHAN – Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Esse exemplo é ilustrativo da discussão que se pretende travar nessa webconferência sobre a adequação e inadequação do direito ambiental para proteção do patrimônio cultural. O nosso ponto de partida é a concepção unitária do meio ambiente defendida por vários jus ambientalistas. A concepção unitária do ambiental sustenta uma visão integrada dos bens naturais, culturais e artificiais. O direito ambiental então conseguiria fazer uma proteção de todos esses bens. Contudo, nós reputamos que há uma diferença substancial quando se trata de proteger os bens naturais, representados pelo Encontro das Águas, e quando se trata de proteger os bens culturais, representados na imagem pelo Teatro Amazonas, que também é um bem tombado pelo IPHAN. Assim, o nosso objetivo nesta webconferência é desenvolver um pouco esta discussão.

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Eu quero fazer desde logo um esclarecimento:  como essa weconferência é realizada para um curso de especialização interdisciplinar, que conta com a participação de pessoas de várias áreas, de vários campos do saber, eu deixo registrado que a nossa análise é feita a partir do campo jurídico, é uma análise jurídica. E o início da nossa análise é o marco principal a partir do texto constitucional relacionado à proteção dos bens naturais que está no artigo 225 da CF/88, que vai falar justamente do direito que todos têm a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Esse artigo é importante porque, mais à frente, quando falarmos dos bens naturais, uma das palavras-chave que integra sua definição é justamente equilíbrio ecológico.

Já o artigo 216 da Constituição vai tratar justamente dos bens culturais e do patrimônio cultural. Esse artigo estabelece que o patrimônio cultural é constituído dos bens de natureza material e imaterial, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Com isso, para os bens culturais, a palavra-chave que integra sua definição é “referência cultural” ou “referencialidade”. Dessa feita, enquanto que nos bens naturais o equilíbrio ecológico é o seu elemento jurídico definidor, nos bens culturais esse elemento jurídico definidor é conferido pela ideia de referencialidade, por aquilo que faz referência à memória.

Estes são os dois marcos jurídicos que a nossa Constituição traz. É a partir deles que nós vamos tentar desenvolver a diferenciação entre os bens naturais e os bens culturais para saber se o direito ambiental pautado pela ideia de equilíbrio ambiental, é adequado para proteger o patrimônio cultural. Essa é a nossa discussão.

O slide seguinte contém uma panorâmica do caminho que pretendemos percorrer nessa webconferência. O nosso ponto de partida vai ser esclarecer, em linhas gerais, o que é a concepção unitária de meio ambiente que compreende os ambientes natural, artificial e cultural como integrantes de um todo unitário e na sequência vamos falar um pouco sobre a evolução que a proteção do patrimônio cultural tem com relação aos vários ramos do direito: direito civil, direito administrativo, direito ambiental, até chegar ao direito do patrimônio cultural. 

Nossa análise toma como referencial o livro do professor Carlos Magno , em que ele vai defender justamente uma autonomia do direito do patrimônio cultural – para tanto o professor se apoia em um outro autor que é o Niklas Luhmann, para fazer uma análise dos bens naturais e dos bens culturais a partir da estruturação de códigos binários.

Essa estruturação é, justamente, para embasar a discussão e saber se alguns princípios inerentes ao direito ambiental, tais como os princípios da prevenção, precaução,  equilíbrio ecológico – que são as bases de sustentação e o cerne do direito ambiental –, se eles são adequados para proteger os bens culturais.

Ao final, vamos fazer o caminho contrário: o principal instrumento de proteção do patrimônio cultural material que há no nosso ordenamento jurídico é o tombamento. O tombamento é o instrumento de proteção dos bens culturais materiais. Dito isso, será que o tombamento é adequado para a proteção de bens naturais? Já foi citado o exemplo do Encontro das Águas que é um bem natural, e ele se encontra tombado pelo IPHAN, ou seja: esse instrumento é usado para proteger os bens naturais, mas será que é um instrumento adequado? Essas são as questões centrais e o percurso que nós vamos tentar fazer nas nossas discussões nesta noite.

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O homem faz parte do meio ambiente, o que evidencia a existência de uma relação entre o homem e a natureza. O homem transforma o meio ambiente ao mesmo tempo em que é por ele influenciado. Não podemos ignorar essa relação.  A forma como o homem interage com a natureza, transforma a natureza, é influenciada pela cultura. A ação humana é, portanto, uma ação cultural. E isso justificaria a proteção do patrimônio cultural a partir do direito ambiental, porque o chamado meio ambiente cultural é resultado da ação do homem sobre a natureza. Trata-se de uma visão ampla e geral do direito ambiental sobre a relação do homem com a natureza, para proteger o patrimônio cultural com base nessa visão unitária.

Essa concepção unitária do meio ambiente vai justamente estabelecer a relação dos bens naturais, do meio ambiente natural, representado neste slide pelo Arquipélago de Anavilhanas que fica no Amazonas, próximo à cidade de Manaus. A imagem seguinte é do Centro da Cidade de Manaus, exemplificando o meio ambiente artificial e, mais à esquerda, o palácio da justiça, tombado e protegido pelo Estado do Amazonas para fazer a representação do meio ambiente cultural. Então a concepção unitária do meio ambiente que parte da relação entre o homem e a natureza é utilizada como fundamento para proteger, além dos bens naturais, os bens culturais – ou seja, o patrimônio cultural a partir dos princípios e do arcabouço normativo do direito ambiental.

Dito isso, surge o seguinte questionamento: essa relação entre natureza e cultura é fundamento apto a subordinar os bens culturais ao direito ambiental? E afirmamos desde logo: Esse fundamento sozinho não é capaz de justificar a proteção do patrimônio cultural a partir do direito ambiental.

Quando nos referimos à relação do homem com a natureza, estamos falando numa perspectiva antropológica e sociológica, pois não há como separar os elementos dessa relação homem-natureza. Nós vivemos num meio ambiente e interagimos com ele, com este espaço. Então tudo que nós fazemos modifica de alguma forma o meio ambiente.

Conforme falamos no início dessa webconferência, a nossa análise é jurídica. Logo, precisamos buscar no ordenamento jurídico o conjunto de normas que se destina à proteção do patrimônio cultural, o que vai lhe conferir uma delimitação diferente. Logo, a relação homem-natureza não é suficiente porque é dotada de uma grande generalidade em que tudo que existe no mundo deriva dessa relação ou é natureza intocada.

A proteção jurídica do patrimônio cultural percorre vários ramos do Direito, iniciando essa proteção pelo Direito Civil, em que se fazia a proteção dos bens culturais por meio da propriedade privada. O Direito Administrativo, disciplinando a forma de atuação do Estado, também estabelece mecanismos de proteção dos bens culturais, pois disciplina os atos praticados pelo Estado, especialmente quando os bens culturais passam a ser tratados como sendo patrimônio da Nação e uma forma de construção da identidade nacional de um povo. Estamos olhando, portanto, para os Estados Nacionais que, no caso do Brasil, correspondem ao governo de Getúlio Vargas no período do Estado Novo. Inclusive, é importante registrar que a principal norma de proteção do patrimônio cultural, o Decreto-Lei nº 25/1937, que institui o Tombamento, foi editada durante esse período.

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O Direito Ambiental, por sua vez, confere aos bens culturais um valor que transcende a ideia de propriedade do direito civil, e também a de bem público como sendo propriedade do Estado. Os bens culturais adquirem um valor socioambiental, um valor que não é só uma relação de propriedade, mas um valor de interesse social da coletividade. Porque há nestes bens um interesse de todo um agrupamento humano, de toda uma comunidade. Então vejam: para a compreensão da proteção dos bens culturais, estamos partindo da proteção conferida pelo Direito Civil que incide unicamente sobre a propriedade, em seguida do Direito Administrativo que disciplina a atuação do Estado na proteção dos bens culturais, e do Direito Ambiental que atribui aos bens culturais valor socioambiental para amparar a sua proteção. O uso no âmbito do Direito Ambiental da denominação “bem socioambiental” é adotada pelo professor Carlos Frederico Marés que faz a definição de bens naturais e bens culturais com bens socioambientais. Com isso, referido autor compreende que a proteção desses bens (naturais e culturais) deve ocorrer pelo mesmo arcabouço jurídico normativo, por um mesmo conjunto de normas, as que integram o Direito Ambiental. 

Vejamos as seguintes imagens para exemplificar: temos a imagem da Cachoeira da Pedra Furada que é um bem natural e fica num município vizinho a Manaus, e temos ao lado, no slide, a imagem do Reservatório do Mocó que é um bem cultural tombado situado na cidade de Manaus. Ambos consistem, segundo a definição mencionada há pouco, em bens socioambientais que estariam, portanto, sujeitos a um mesmo conjunto de normas protetivas, às normas do Direito Ambiental. Olhando para essas duas imagens já se identifica visualmente uma diferenciação entre os referidos bens e, intuitivamente, é possível duvidar da adequação do uso de um mesmo instrumento de proteção para bens tão distintos.

Com isso, surge uma tendência doutrinária de se construir uma proteção jurídica própria para os bens culturais, para além da disciplina jurídica conferida pelo Direito Civil, Administrativo e mesmo Ambiental. E essa tendência nos guia então para uma certa autonomia do direito do patrimônio cultural que está inserido no campo dos Direitos Culturais. A ideia de um ramo jurídico autônomo para a tutela dos bens culturais é uma proposta que vem sendo sedimentada. Há vários eventos frutos dessas discussões sobre a autonomia dos Direitos Culturais. Há o Grupo de Estudos e Pesquisas de Direitos Culturais da UNIFOR, há encontros Internacionais de Direitos Culturais realizados pelo referido grupo, liderado pelo professor Humberto Cunha. Esses são apenas alguns exemplos ilustrativos da proliferação de discussões sobre esse tema da autonomia dos direitos culturais e que estão buscando construir um campo próprio de estudo de normas jurídicas que venham proteger da forma mais adequada possível o patrimônio cultural, por julgar que esse campo jurídico é mais adequado para a proteção dos bens culturais, de forma a fazer uma desvinculação do direito ambiental – mas apenas naquilo que é necessário ser desvinculado, pois o Direito Ambiental possui um arcabouço normativo que contempla um conjunto de instrumentos jurídicos de proteção que não podem ser ignorados totalmente.

O estudo dos direitos culturais é dividido em três grandes campos: o das artes, o das memórias coletivas e o do fluxo de saberes. É no campo da memória coletiva que o patrimônio cultural possui uma inserção mais evidente, mas ele se encontra presente também nos campos das artes e dos fluxos de saberes. Mas vamos avançar na explicação sobre a autonomia dos direitos culturais e tentar demonstrar, ou construir uma explicação, para essa autonomia, para o porquê de os bens naturais ou bens culturais merecerem um tratamento jurídico distinto.

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Vamos retomar nossa pergunta do início: Por que o direito ambiental é inadequado para fazer a proteção do patrimônio cultural? Como dito no início da nossa fala, vamos seguir os passos do professor Carlos Magno da Universidade Federal de Outro Preto (UFOP), que  faz essa discussão a partir do Niklas Luhmann. Este autor vai falar sobre um sistema operativo para o Direito e uma codificação binária. Em síntese: O Direito é composto/compreendido por um sistema binário, que vai tratar sobre o que é legal / ilegal ou lícito / ilícito. A análise das nossas condutas a partir do Direito é delineada e delimitada pelo próprio Direito. Através dessa definição, o prof. Carlos Magno vai dizer: Os bens naturais devem ser protegidos a partir do seguinte código binário, relembrando o artigo 225 da CF, “equilíbrio” e não “equilíbrio ecológico”. Esse é o ponto principal para construção de proteção dos bens naturais. Já para os bens culturais, o artigo 216 da CF/88, traz outro código binário: a ideia de “valor” e “não-valor” cultural, definido a partir da ideia de referência ou referencialidade à memória dos povos formadores da sociedade brasileira.

Esses códigos binários, atrelados aos bens naturais e aos bens culturais, indicam aspectos bastante distintos. Inclusive, quando falamos de equilíbrio ambiental, falamos para assegurar a qualidade de vida. Contudo, a proteção dos bens culturais independe, em sua grande maioria, desse aspecto de equilíbrio ambiental. Se para fundamentar a proteção de bens culturais fosse necessário o equilíbrio ecológico, como justificar, por exemplo, a proteção de alguns campos de concentração nazistas? Um lugar hostil e inapropriado para a vida humana, e que traz um constrangimento causado pelo desconforto emocional, pelo sofrimento infringido às pessoas no local. Em São Paulo, há imóveis que foram locais de prática de tortura durante o período militar e recebem proteção jurídica pois possuem um valor cultural ligado ao campo da memória, mas se fôssemos olhar esses bens culturais pensando no equilíbrio ecológico, na qualidade de vida, esses bens não receberiam proteção. Assim, percebe-se que o equilíbrio ecológico não é relevante para fundamentar a proteção de um bem cultural, mas é relevante para se proteger um bem natural que deve atentar para a qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida dos seus elementos constitutivos (solo, fauna, água etc.).

Protege-se os bens naturais na perspectiva de que eles tragam qualidade ao meio ambiente e nos concedam qualidade de vida, mas essa qualidade de vida não é essencial para definir se um bem cultural merece ou não proteção jurídica. O que vai ser relevante pelos códigos binários para os bens naturais é o equilíbrio ou o desequilíbrio ambiental. Já para os bens culturais, ainda que seja desejável a presença do equilíbrio ecológico, ele não é essencial para a definição do valor cultural. A proteção do patrimônio cultural está mais ligada ao valor e ao significado que esse bem possui, do que mesmo ao seu suporte físico.

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Podemos citar como exemplo o Mercado Adolfo Lisboa, representado na imagem ao lado.  Ele é um mercado público de Manaus que é tombado, possuindo, portanto, uma proteção jurídica  sobre a sua estrutura física, mas o que justifica e o que motiva essa proteção é o seu valor cultural e a ideia da referencialidade, que encontra na sua estrutura física o seu suporte material. Vamos então relembrar os códigos binários que nos ajudam a perceber algumas diferenças sobre os sistemas de proteção para os bens naturais (equilíbrio e não equilíbrio ecológico) e bens culturais (valor e não valor cultural).

O Direito Ambiental protege os bens naturais em razão da qualidade de vida e do equilíbrio ecológico. Já o Direito do Patrimônio Cultural protege o suporte físico do bem em razão do seu valor cultural. Dito isso, podemos formular o seguinte questionamento: Seria possível então cindir os aspectos físicos e valorativos dos bens culturais para submetê-los a diferentes sistemas jurídicos de proteção? Deixem-me tentar ser mais claro: se nos bens culturais estão presentes tanto seu aspecto físico quanto seu aspecto valorativo (valor cultural) – que é algo distinto daquele, mas está presente (incorporado/materializado) naquele aspecto físico –, eu conseguiria dividir então esses dois aspectos para então fazer a proteção do aspecto físico a partir do direito ambiental (equilíbrio e desequilíbrio ambiental) e do aspecto valorativo a partir do direito do patrimônio cultural (valor e não-valor cultural)?

Esse é o questionamento e, para tentar respondê-lo, vamos analisar então alguns princípios do Direito Ambiental. Vamos começar pelo princípio da prevenção e da precaução, que são as bases do Direto Ambiental, pois trazem a ideia de prevenir e acautelar os bens naturais de um eventual dano ambiental que influa negativamente no equilíbrio ambiental. Então vamos pensar na situação de um empreendedor que deseja explorar uma determinada atividade econômica e essa atividade causa impacto ambiental. Com base na prevenção e na precaução, essa atividade econômica pode ser impedida de ser executada em razão dos impactos ambientais, ou é possível permitir essa atividade após a realização de estudos de impacto ambiental, desde que esses impactos possam ser mitigados pela adoção de medidas de proteção ambiental. Então por cautela - prevenção e precaução - uma atividade econômica pode ser impedida de ser executada ou pode ser permitida desde que sejam atendidas condicionantes para fazer a salvaguarda do meio ambiente e a manutenção da qualidade de vida.

Esses princípios são aplicáveis na proteção do patrimônio cultural? Eu tenho o pensamento de que sim, que eles são adequados pela sua “cautelaridade”, ou seja: se há  um determinado bem, e há dúvida acerca do seu valor cultural, como por exemplo, quando ele não está formalmente tombado, em que pese o tombamento não ser constitutivo, mas  declaratório. Contudo, o tombamento estabelece uma segurança jurídica sob regime jurídico de proteção que inclui a proibição de destruição do bem tombado. Logo, se há dúvida acerca do valor cultural que um determinado bem possui, eu acredito que esses princípios – prevenção e precaução – tenham aplicação, justamente para impedir que seu suporte físico seja destruído. Isso porque, ao destruir seu suporte físico, atinge-se seu valor cultural com a perda de elementos de contato com a memória.

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Nós temos um exemplo: o teatro de Sagunto, que fica em Valença, na Espanha, em que ocorreu um caso interessante. Há duas imagens nesse slide que vemos agora: ao lado esquerdo temos o Teatro de Sagunto, ou a imagem das suas ruínas, e do lado direito a imagem desse mesmo teatro, mas após a sua revitalização, sua restauração.  A revitalização do Teatro de Sagunto foi realizada justamente com fundamento nos princípios de prevenção e precaução para evitar que esse bem desaparecesse de forma definitiva em razão da ação do tempo e do seu estado de conservação.  A revitalização desse teatro gerou questionamentos sobre o acerto dessa medida, que foi levada para apreciação do Tribunal Espanhol. O argumento apresentado contra a revitalização do teatro era justamente o de que a sua estrutura física, em ruínas, tinha um valor cultural próprio, e a revitalização que foi realizada destruiu, alterou ou adulterou esse valor. O Tribunal Espanhol, apreciando a questão, decidiu que a revitalização do teatro foi indevida e que ela fosse desfeita. Com isso, determinou-se que a estrutura física do teatro voltasse a ser de ruinas, o que é algo quase impossível de ser feito.

Um questionamento se faz necessário sobre a questão jurídica relacionada ao Teatro de Sagundo: os princípios da prevenção e da precaução foram utilizados de forma adequada para proteger o valor cultural desse bem? Penso que não. Esses princípios podem ser adotados para impedir a deterioração total do bem cultural, retardando as ações do tempo, mas eles não amparam a realização de uma revitalização como aquela feita no Teatro de Sagunto. Logo, é importante deixar claro que uma coisa é falar sobre a proteção do valor cultural do bem; e outra é falar da proteção do seu suporte físico. Mas é claro que não se ignora o aspecto de que, se eu protejo o suporte físico, protejo também o aspecto valorativo, valor cultural. Mas a definição de valor cultural desse bem não está relacionado ao fundamento principal do direito ambiental, que é o equilíbrio ecológico. Então, por isso o questionamento de saber se seria possível fazer essa distinção – ou seja, diferenciar o aspecto físico do aspecto valorativo relacionado aos bens culturais é relevante.

Contudo, vamos imaginar um determinado bem cultural, material e imóvel, situado numa determinada cidade que possui grande concentração de poluição ambiental, como a poluição visual e a poluição sonora, por exemplo. Essa situação não atrai a incidência das normas de direito ambiental para proteger este bem cultural, já que ele integra o meio ambiente? Não tenho dúvidas de que o Direito Ambiental é essencial para combater a poluição ambiental que causa danos aos bens culturais, mas o Direito Ambiental não é essencial para a definição do valor cultural do bem, porque essa definição é aferida por meio da ideia de referência cultural.

Analisamos há pouco o uso de instrumentos do direito ambiental para proteger um bem cultural; vamos então analisar o uso de um instrumento do direito do patrimônio cultural, o tombamento, para saber se ele é adequado para a proteção dos bens naturais. Vamos refletir então sobre o seguinte ponto: Um bem natural pode ter valor cultural? A resposta a essa pergunta é afirmativa: Sim, é perfeitamente possível. Vamos retomar o exemplo do Encontro das Águas na cidade de Manaus. Esse bem natural possui valor cultural pois é símbolo da cidade de Manaus, do Estado do Amazonas e do seu povo. Ele é dotado de beleza paisagística e de elementos místicos também. Pode-se dizer que há dois bens culturais que representam a identidade dos manauaras e dos amazonenses: o Encontro das Águas (bem natural) e o Teatro Amazonas (bem cultural).

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Então, o Encontro das Águas, mesmo sendo um bem natural, pode ser protegido pelo tombamento?  Julgo que não há dúvidas quanto a essa possibilidade. Ou seja, sim, é possível – tanto que esse bem natural é tombado pelo IPHAN. Mas, é necessário chamar a atenção para o fato de que o tombamento não é um instrumento adequado para assegurar a manutenção do equilíbrio ecológico. A proteção do equilíbrio ecológico deve estar atrelada ao Direito Ambiental e às normas ambientais.

Vamos conhecer um pouco mais sobre o tombamento do Encontro das Águas, pois há uma questão interessantíssima envolvendo esse tombamento. Ele foi realizado em 2010 pelo IPHAN, mas há questões econômicas que compõem o pano de fundo da proteção desse bem natural. A imagem desse slide apresenta o Encontro das Águas e uma região contendo um lago. Nas proximidades desse lago há um projeto para a construção de um porto, denominado de Porto das Lajes.

Quando o projeto de construção do Porto das Lajes tornou-se pública surgiram alguns movimentos populares contrários ao referido empreendimento e também desencadeou a atuação do Ministério Público Federal pleiteando que fosse realizado o tombamento  do Encontro das Águas, o que acabou sendo realizado em 2010, ainda que de forma provisória, ou seja, foi realizado o tombamento provisório do Encontro das Águas pelo IPHAN.

É interessante registrar que as discussões que foram travadas sobre o tombamento do Encontro das Águas envolviam mais aspectos ambientais do que aspectos culturais, tanto que o próprio IBAMA, uma autarquia incumbida da proteção do meio ambiente, externou preocupação com o referido tombamento porque na área tombada e no entorno há unidades de extração de água, há adutoras que extraem a água que abastece boa parte da cidade de Manaus. Não podemos esquecer da competência para agir da Agência Nacional de Águas, porque o Encontro das Águas, mesmo tendo sido tombado, consiste num recurso natural regulado por essa agência. Há também competência da Marinha do Brasil, pois o Encontro das Águas está situado num rio navegável. Esse rio é federal, o que também atrai a gestão da Secretaria de Patrimônio da União, pois também consiste num bem público pertencente à União. E se há um projeto de construção de um porto, não se pode esquecer do interesse da Agência Nacional de Transporte Aquaviário.

Então você tem um leque de órgãos e instituições envolvidos, que torna a proteção do Encontro das Águas ainda mais complexa com relação ao aspecto natural, colocando-a sob a égide das normas de direito ambiental. Já a definição e a proteção do valor cultural desse bem fica a cargo das normas de direitos culturais, pois essas são questões ambientais que não se encontram no espectro de proteção do tombamento.

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Para reforçar o argumento de que o tombamento não é adequado para proteger o equilíbrio ambiental, basta observar que o tombamento do Encontro das Águas não abrange esse fenômeno natural em toda a sua extensão, mas foi traçado uma poligonal. Contudo, os impactos ocasionados por um dano ambiental não conhecem fronteiras, os impactos são trans-fronteiriços, ou seja, ele não vai ser contido pela referida poligonal. Então o tombamento não é adequado para a proteção ambiental do equilíbrio ecológico. Inclusive, pensando em termos práticos, seria muito complicado para o IPHAN promover a proteção do equilíbrio ecológico se o tombamento fosse um instrumento de proteção ambiental, pois,  por mais capacitado que seja seu corpo técnico, essa atribuição ficou constitucionalmente a cargo de outro ente ( no caso, o IBAMA) e o enfoque do IPHAN é o valor cultural dos bens, tanto que o tombamento é um instrumento adequado para a proteção do valor cultural do bem natural.

Em síntese, e para marcar nosso posicionamento, perguntamos: os bens naturais podem ser protegidos pelo tombamento? E respondemos: Sim, mas para a proteção dos seus aspectos culturais, ou seja, do valor cultural do bem natural. O tombamento não é instrumento adequado para a proteção dos seus aspectos ambientais, do equilíbrio ecológico do bem natural. Com isso, caminhamos então para o final da nossa explanação, indicando algumas conclusões que são a síntese do que falamos até o momento:

Vamos começar pelo ponto de contato do direito ambiental com a proteção do patrimônio cultural: Segundo as ideias jus-ambientalistas, esse ponto de contato decorre do equilíbrio ecológico, da transversalidade, da ubiquidade do direito ambiental, ou seja, o direito ambiental é visto como onipresente. Esse é o fundamento para a tutela dos bens culturais a partir do direito ambiental. 

Contudo, vamos relembrar que sob a ótica dos direitos culturais, o fundamento jurídico de proteção dos bens culturais é a ideia de referência cultural ou referencialidade, prevista no artigo 216 da Constituição e que contempla o código binário: valor e não valor cultural. Com isso, pontuamos uma insuficiência do Direito Ambiental para a proteção do valor cultural de um bem.

Além disso, relembramos que a relação entre natureza e cultura não é suficiente para subordinar os bens naturais e os bens culturais a um mesmo sistema jurídico, o do Direito Ambiental, porque ainda que seja inegável que a relação homem-natureza é necessária e inseparável, ela não consegue atribuir ao Direito Ambiental normatividade suficiente para a proteção do valor cultural dos bens culturais, pois estes possuem códigos binários específicos e distintos dos códigos binários do Direito Ambiental.

Vou tentar aclarar esses pontos com um exemplo. E torço para conseguir deixar a explicação mais clara e não mais confusa. Vamos ao exemplo: trata-se da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol no Estado de Roraima. Essa terra indígena era explorada economicamente por não indígenas por meio de plantações de arroz. Com a conclusão da demarcação foi realizada a retirada dos não índios e a entrega das terras às comunidades indígenas. Algumas comunidades decidiram continuar com as plantações de arroz, fazendo a sua exploração econômica. Contudo, essas comunidades acabaram sendo autuadas pelo órgão ambiental porque elas não tinham o licenciamento ambiental. As comunidades questionaram essa atuação do órgão ambiental argumentando que possuem o usufruto exclusivo das suas terras tradicionais assegurado pela Constituição.

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Eu pontuei algumas questões quando escrevi um artigo sobre esse tema: Os indígenas precisam ou não se submeter ao licenciamento ambiental? A resposta depende do aspecto cultural. A concepção unitária de direito ambiental me pareceu útil nessa discussão. Eu pensei o seguinte: se a exploração que os índios fazem nas suas terras tradicionais é realizada com base nas suas formas de criar, fazer e viver, segundo seus costumes e tradições não é necessário o licenciamento ambiental. Contudo, a ausência de obrigatoriedade de licenciamento não os excluiria da obrigação de, segundo seus valores, assegurar a manutenção do equilíbrio ecológico. Agora se os povos indígenas se relacionam com a natureza a partir de uma perspectiva capitalista, que é o modelo econômico que a nossa Constituição estabelece, os instrumentos para a proteção ambiental são aqueles estabelecidos na Constituição e nas normas jurídicas que exigem o licenciamento ambiental. Então percebam que é a relação do homem com a natureza que vai definir a forma como será feita a proteção ambiental, seja exigindo o licenciamento ambiental ou não. Então, se os povos indígenas vão explorar uma atividade econômica, eles devem se submeter às regras do mercado, devem se submeter às normas que para esse tipo de exploração possuem um sistema jurídico normativo de proteção do meio ambiente. Então vejam que nestes casos não é possível ignorar essa intensa relação do homem com a natureza. Mas já para a definição do valor cultural de um determinado bem, o fundamento jurídico encontra-se no artigo 216 da Constituição que traz a ideia de referencialidade.

Disso decorre uma outra conclusão: a proteção  dos bens culturais pode  ser cindida em  dois campos: um para fazer a proteção dos seus aspectos físicos com base no Direito Ambiental, pois não podemos desprezar o arcabouço jurídico normativo do direito ambiental para esse propósito,  até que se desenvolva um aparato jurídico normativo próprio atrelado aos direitos culturais, ou mais especificamente do Direito do Patrimônio Cultural que dê esse suporte jurídico. Já o segundo campo relacionado ao aspecto valorativo dos bens culturais, repito, deve ser buscado no valor de referência cultural positivado no artigo 216 da Constituição e, portanto, junto aos Direitos Culturais. Por fim, o tombamento não é adequado para tutelar os bens naturais em relação aos seus aspectos ecológicos, mas somente com relação aos seus aspectos culturais. Com isso, finalizo a exposição.

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Esse slide apresenta as referências bibliográficas utilizadas para esta exposição. Registro a presença do professor Carlos Magno, autor do livro sobre o direito do património cultural que embasou muitas das ideias que foram apresentadas nesta webconferência. Assim agradeço e registro a presença dele. Finalizo e agradeço, mais uma vez, o convite do grupo de estudo e pesquisa em direitos culturais, organizado e liderado pelo professor Humberto Cunha, e agradeço, também, à professora Marisa Damas da Universidade Federal de Goiás, que está viabilizando estas webconferências. Registro também a presença dos colegas do GEPDC da UNIFOR. Muitíssimo obrigado.

Marisa:

Allan, nossos agradecimentos. Assunto muito rico, muito material para a gente pensar e refletir a respeito. Nós vamos abrir agora para as perguntas. A primeira é do Werner. Ele pergunta: Como se dá a questão dos direitos culturais e ambientais a respeito da construção de barragens e hidrelétricas? Qual seria a relação dos direitos a esse respeito?

Allan:

A pergunta está relacionada à questão de direitos culturais e direitos ambientais com a construção de barragens. Há muitos conflitos relacionados a esta temática, não só com relação às barragens, mas com a questão ambiental na construção de hidrelétricas. São muitas polêmicas. Na Região Norte, nós temos a construção da hidrelétrica de Belo Monte e os danos ambientais relacionados e os impactos culturais com remoção de comunidades indígenas. Eu vou colocar a questão sobre o ponto de vista de sopesamento de direitos e interesses, apontando o que infelizmente parece estar vigorando. De um lado, tem-se uma decisão política do Estado: a construção, a realização dessas grandes obras, mesmo com inúmeros pontos do projeto sendo questionados. Existem inúmeras ações judiciais discutindo a construção dessa hidrelétrica, com a remoção das pessoas das comunidades indígenas que estão na área abrangida pelo empreendimento. A discussão sob a perspectiva dos direitos culturais é relacionada às formas de criar, fazer e viver, das comunidades e grupos humanos que são atingidos pelo deslocamento compulsório dos seus territórios devido à  construção desses empreendimentos. Dentro dessa discussão, nós temos os valores que normalmente são colocados em jogo, que são: de um lado, a questão de fornecimento de energia, de necessidade de energia, de produção de energia hidrelétrica ; e de outro, os danos ambientais que estão sendo ocasionados ao meio ambiente como reflexo direto sobre as pessoas que vivem nesses espaços com relação aos seus direitos culturais. A decisão que o governo tomou não leva em conta os interesses locais, das comunidades locais. Então, temos uma afronta, uma violação a inúmeros direitos das comunidades indígenas, colocando em risco suas formas culturais e tradicionais de vida, o que lança dúvidas acerca da efetividade do Direito Ambiental e, também, dos Direitos Culturais para conter ações deste viés que atinge referidas comunidades.  

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Marisa:

Nós temos uma segunda questão, do Fernando Soares. Ele pergunta se o plano diretor de uma cidade, ligado a um planejamento, ajudaria a conciliar a questão ambiental, cultural e patrimonial da cidade?

Allan:

Sim. O Plano Diretor contém a ideia de planejamento. O Plano Diretor tem na sua própria construção, com a participação da comunidade, com a realização de audiências públicas e as revisões que têm que ser realizadas, um grande potencial conciliador das questões ambiental, cultural e patrimonial da cidade. Então, com o planejamento que o Plano Diretor viabiliza, faz-se um mapeamento e é possível conhecer os espaços da cidade; consegue-se identificar os espaços que possuem uma agregação de bens de valor cultural e promover sua organização e ordenação.

Eu tenho alguns textos que apontam o Plano Diretor como um dos instrumentos de proteção do patrimônio cultural, porque ele traz na sua essência a ideia de planejamento e, quando se planeja, fica muito mais fácil e adequada a proteção desses bens, ou seja, dos bens culturais que se encontram na nossa cidade ou nas cidades em que estejam.

Em Manaus, por exemplo, o Plano Diretor foi revisado há uns 3 ou 4 anos atrás. Tinha-se uma discussão acerca desses elementos culturais. O centro da cidade de Manaus encontra-se tombado pelo IPHAN. Então, todos esses elementos devem ser agregados à discussão sobre o planejamento da cidade e são instrumentos que possibilitam a participação democrática. É planejar a cidade, e dentro desse planejamento, assegurar a proteção do patrimônio cultural, fazendo também uma associação do patrimônio cultural com o turismo, para incentivar a visitação desses espaços, inclusive como fonte de renda para as pessoas e para a salvaguarda do próprio patrimônio cultural.

Marisa:

A próxima pergunta é do Fábio André: qual é o conceito de cultura que foi trazido na base da palestra, a tese da sua palestra? Em qual base de conceito de cultura a sua palestra se fundamentou?

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Allan:

Eu falo de um campo do conhecimento que é o campo jurídico, o campo do direito. Então, quando eu falo sobre a questão da cultura, falo a partir de um recorte normativo, que é feito pela Constituição Federal de 1988, acerca da cultura e da definição que ela traz sobre patrimônio cultural no artigo 216, sobre a seguinte perspectiva: Quando nós vamos olhar na Antropologia, nós temos correntes que nos conferem uma concepção de cultura extremamente ampla - que qualquer atividade humana, qualquer ação, qualquer atitude humana que seja feita, que se produza – até mesmo essa webconferência em que nós estamos é cultura, é produto da construção da cultura. Aquilo em que o homem interfere, age, atua, isso é cultura. Nós vamos pegar um exemplo: a cidade, a cidade que vocês moram. Tudo aquilo que está produzido, todos os prédios que ali estão feitos, todas as construções que ali estão, são produtos do homem e são produtos culturais, são construídos culturalmente pelo homem. Se nós queremos, e é isso que a Constituição vem estabelecer, um conjunto de bens a ser protegido, se eu digo que eu vou proteger a cultura, e que essa cultura é tudo aquilo que o homem produz e cria, eu crio uma proteção tão ampla que não protege nada. Então, quando se propõe a proteger tudo, no final das contas, não se protege nada. E a Constituição assim não faz, porque ela delimita, ela delineia um campo que vai integrar o patrimônio cultural. Serão cultura aqueles bens, segundo o artigo 216, de natureza imaterial ou material que são portadores de referência à identidade, à ação e à memória. Então, a proteção jurídica da cultura não incide sobre todos os bens, sobre toda a cultura, digamos assim, mas apenas sobre aquelas que sejam dotadas de referencialidade, conforme o artigo 216 da Constituição. Na Antropologia, o sentido amplo de cultura é importante, mas para uma perspectiva jurídica, para se estabelecer uma proteção a partir de um arcabouço jurídico-normativo, é necessário ter um recorte, e esse é dado a partir do texto constitucional. Esse recorte é justamente o que estou trabalhando, ou seja, o que estou falando como cultura e que vai ser objeto de proteção, estou reportando ao patrimônio cultural que conjuntos de bens materiais e imateriais que são portadores de referência à identidade, à ação e à memória de determinados povos formadores da sociedade brasileira. É essa a ideia de patrimônio, são esses os valores que nós precisamos identificar para definir quais são os bens que vão receber proteção jurídica. Então, a perspectiva de cultura que eu estou utilizando é a delineada pelo texto constitucional, artigo 216. Mas observem que  estou partindo de um campo próprio do conhecimento: o da ciência jurídica, necessário para uma abordagem jurídica da cultura.

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Thiago Erthal:

Boa Noite! Parabéns pela sua exposição! Bem clara, bem objetiva. Eu quis falar pelo microfone, pela câmera, porque eu não ia conseguir escrever tudo o que pretendo falar, mas eu vou ser rápido. Eu sou seu colega de AGU e atuo aqui no Rio de Janeiro. E essa questão do Direito Ambiental, do Direito Cultural, pra mim é particularmente tormentosa. Como hoje eu faço consultoria do IPHAN aqui no Rio, em muitos pareceres eu preciso analisar conceitos, analisar princípios que, muitas vezes, são conceitos e princípios do Direito Ambiental para aplicar ao patrimônio Cultural, porque a alternativa não é a autonomização do Direito Cultural. O que eu vejo muita gente defender é que se o Direito Cultural não seria uma espécie dentro do Direito Ambiental, ele estaria dentro do Direito Administrativo. E por mais que eu entenda as questões que você colocou, eu ainda acredito que esses princípios, esses conceitos do Direito Ambiental, se aproximam mais do que a gente precisa para estudar patrimônio cultural.

Quando você fala de tombamento, eu vejo poucas pessoas defendendo que o tombamento é um instituto adequado para se proteger o meio ambiente natural, até porque o tombamento é de 1937, uma época que o Direito Ambiental sequer existia como ciência autônoma. Já tinha uma primeira versão do código florestal, mas não se podia falar de um meio ambiente holisticamente considerável. Mas, outros instrumentos são bastante adequados, a publicação da IN 1 – Instrução Normativa 1, e aquela portaria interministerial que insere avaliável do patrimônio cultural no licenciamento ambiental. Os dados que se tem hoje, principalmente de Arqueologia, demonstram que isso trouxe um grau de eficiência muito grande dentro do que se tinha até 2015 quando ela foi publicada.

Então, com certeza, o tombamento não é o instituto adequado para isso. É um instrumento dentre outros tantos possíveis. Será que a gente não pode utilizar conceitos e princípios próprios do direito ambiental para trabalhar com direito cultural, mas à luz de outros instrumentos?

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Allan:

A proposta ou a discussão que busquei estabelecer nesta Webconferência consiste na relação entre o direito ambiental e a proteção do patrimônio cultural – não visa afastar totalmente, ou seja, ignorar a relevância do direito ambiental para a proteção do patrimônio cultural. Não é essa a ideia proposta, mas é lançar, acima de tudo, um conjunto de questionamentos acerca da concepção unitária do direito ambiental e da aplicação impensada, ou pouco refletida, dos institutos do direito ambiental para a proteção do patrimônio cultural.

Esse é o ponto da nossa discussão: Há elementos no direito ambiental que não são adequados, ou que vão contrariar ou contradizer os valores culturais que recebem proteção constitucional, como a ideia de equilíbrio ou não equilíbrio ambiental. A referência normativa que você colocou é importantíssima: a instrução normativa que disciplina a participação do IPHAN no caso de licenciamento ambiental, estabelecendo a participação do instituto do patrimônio histórico e artístico nacional do Iphan para a proteção do patrimônio cultural, especialmente, arqueológico. É importantíssima essa vertente cultural no licenciamento ambiental.

Foi observada a importância dessa vertente do patrimônio cultural no licenciamento ambiental, por exemplo, em Manaus, quando da construção da ponte sobre o Rio Negro, que inclusive foi levada pelo Estado do Amazonas à Câmara de Conciliação na AGU, onde a questão da vertente do patrimônio cultural foi debatida e condicionantes foram estabelecidas, porque em uma das cabeceiras da ponte, enquanto estava ocorrendo as escavações, encontraram achados arqueológicos. A cidade de Manaus  – e o Estado do Amazonas como um todo –  é um grande sítio arqueológico. Não é incomum, quando se vai fazer obras de médio e grande porte, encontrar achados arqueológicos no entorno da cidade. No próprio centro de Manaus, na Praça Dom Pedro II, foram encontradas urnas funerárias de povos indígenas durante as obras de restauração.

Essa instrução normativa do IPHAN é o reconhecimento de que a ação do homem sobre a natureza construindo grandes empreendimentos não é passível de causar impacto apenas ao meio ambiente natural, mas também ao patrimônio cultural, que possui valores próprios que devem ser protegidos.

Então, integrando o licenciamento ambiental, que é um instrumento do direito ambiental, insere-se um campo para discutir a questão do valor cultural, utilizando as normas afetas aos direitos culturais, com o objeto de avaliar se o empreendimento coloca em risco o bem e o  valor cultural.

Há com isso um elemento de integração. Esses ramos do direito não se excluem. A proposta dessa discussão sobre a aplicação do direito ambiental e dos direitos culturais, enfim, é justamente enfatizar que essa integração é necessária. Quando se fala do Direito, norma jurídica, ordenamento jurídico, fala-se sobre a ideia de unidade do Direito. Esses sistemas se inter-relacionam e se interligam. Não são estanques ou isolados. Não se trata de ignorar o direito ambiental, mas de buscar construir, a partir da perspectiva do valor e não valor cultural, um campo próprio para proteger os bens culturais, mas sob o olhar dos valores culturais desses bens.

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A discussão proposta nessa webconferência é muito mais uma ideia que busca construir um espaço ou limitar um espaço próprio dos direitos culturais, do direito do patrimônio cultural, e que ele tenha um diálogo franco com esses outros ramos do direito, como o direito ambiental, o direito administrativo, mas que o seu cerne jurídico, seu ponto principal  – o valor e não valor cultural –, seja assegurado em relação a esses outros campos.

Yussef:

Boa noite a todos. Eu tive o prazer de te conhecer, pessoalmente, no último evento, em um seminário organizado pelo professor Humberto.

Olha só, não é uma pergunta, é mais uma provocação, e é a seguinte: quando você disse que o direito de patrimônio cultural tem como objeto de proteção o valor e significado que o bem cultural traz consigo, eu sou levado a discordar, porque nenhum bem cultural traz valor nenhum consigo. Um bem só se torna cultural, quando a ele é atribuído valor, e aí ele se torna cultural. Eu acho que no Direito a gente passa, às vezes, por cima de alguns detalhes que são muito caros ao patrimônio, porque isso vai levar a consequências de que protege-se sim o bem material, o valor que ele recebeu. Você disse isso, mas é incoerente quando se diz que a proteção dos bens culturais pode ser cindida em duas: uma em relação a seus aspectos físicos e outra a seus valorativos. Um não existe sem o outro. Um bem só é cultural porque a ele foi atribuído valores, logo não há como cindir essas questões, porque se um bem não tem valor, ele não é cultural.

Quais são os valores atribuídos? Aí é uma outra discussão. Assim como, na práxis, na vivência, na cosmologia da cultura na qual o bem está inserido, não há que se falar em divisão em bem material e imaterial. Não existe bem cultural que não tenha em si valor. Ele só é cultural porque foi a ele atribuído um valor, não porque ele traz em si um valor.

Allan:

Quando falo que o bem possui um valor, talvez na minha fala eu tenha deixado omitida a questão: se ele tem valor é porque alguém atribui esse valor.

Partindo da ideia de referência cultural ou referencialidade é a comunidade quem faz essa atribuição de valor ou esse reconhecimento. Se eu deixei passar esse entendimento de que o bem possuiria um valor por si só, independente da existência humana, ou seja, independente de nós ou da comunidade, foi um ato falho na minha fala. Eu pensei que estaria tão claro, que eu omiti esse ponto. O bem cultural possui valor porque alguém atribui esse valor. Nós, seres humanos, a comunidade, enfim, somos quem atribui esse valor.

Agora quando falamos (e aí talvez eu coloque mais questionamentos ainda diante desses que já foram colocados) com relação à possibilidade de separar o aspecto físico do aspecto valorativo,  acredito que seja possível você pensar sobre essas perspectivas. Porque mesmo que o suporte físico venha a ser findo, demolido, deteriorado, destruído, o valor que ele possui subsiste, ou é atribuído ou incorporado a outros bens, outros suportes físicos. O que ele vai trazer é a ideia de representatividade, e aí eu penso da seguinte forma: a possibilidade de que o valor que se atribui a um determinado bem pode inclusive modificar e ter uma releitura, e ter uma reinterpretação. Vou tentar exemplificar essa afirmação com alguns fatos relacionados à Revolução Francesa, que consistem nos atos de vandalismo e a destruição de todo o conjunto de bens que fossem representativos do antigo regime.

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Nesse período muitos bens ali foram destruídos, desencadeando a discussão acerca da possibilidade de dar uma outra significação, ou outro conjunto de valores a esses bens. Logo, se eu consigo mudar esses valores, fazer uma reinterpretação, dar uma ressignificação é porque o suporte físico e o valor cultural não são a mesma coisa.

Não estou dizendo que conseguimos identificá-lo no aspecto valorativo, independente do suporte físico. Ele precisa do suporte físico, mas eu vejo que são coisas diferentes. É o aspecto valorativo que nós vamos proteger, e não o seu suporte físico em si. O suporte físico é necessário, mas ele é algo distinto do valor cultural do bem. Em sendo assim, seria possível construir a proteção do patrimônio cultural observando essa distinção entre o suporte físico e o valor cultural atribuído ao bem.  É possível fazer justamente porque o que vai interessar, muito mais ao direito do patrimônio cultural, é o aspecto valorativo do que o seu suporte físico. Contudo, reconheço que tenho mais dúvidas do que certezas, pois como colocado no questionamento, e se tomo o suporte físico e o valor cultural a ele atribuído como sendo a mesma coisa, esses aspectos seriam inseparáveis, ou seja, sempre tem que proteger o suporte físico, o que fragiliza a proposta de cisão desses aspectos dos bens culturais. Contudo, buscamos lançar a problemática e propostas de solução que precisam ser discutidas e aprofundadas.

Marisa:

Nós temos duas perguntas inscritas aqui: uma é da Cecília e, logo após, do Danilo Curado. A Cecília diz: o tombamento é de fato apropriado para proteger bens naturais, tendo em vista o caráter mutável desses bens e a tendência conservadora do tombamento?

Allan:

Temos aí um grande impasse: esse questionamento eu me faço bastante em relação ao caráter mutável dos bens naturais e à pretensão de imutabilidade do tombamento. O tombamento é destinado para proteger o aspecto valorativo do bem cultural e não para a questão da proteção do aspecto natural, ou seja, dos elementos de equilíbrio e desequilíbrio ambiental. E hoje, para ser bem sincero, tenho dúvidas acerca da adequação do próprio tombamento para a proteção dos bens culturais na forma como ele é colocado: a regra do tudo ou nada. Tomba-se e não se pode mais fazer alterações ou modificações em um determinado bem. Não há um meio termo no tombamento para lidar com essas questões, e mesmo as transformações sociais. Os seus questionamentos, ou as suas dúvidas sobre se o tombamento é realmente adequado para proteger os bens naturais, é perfeitamente pertinente. A minha delimitação nessa webconferência sobre essa questão é um pouco menor, ao tentar dizer o seguinte: o tombamento não é adequado para a proteção dos valores ecológicos, dos aspectos ambientais, do bem natural.

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No máximo, o tombamento vai se prestar à proteção do seu valor, do seu aspecto cultural. E aí se olharmos até mesmo o tombamento do Encontro das Águas, você tem ali uma poligonal que foi estabelecida num determinado espaço físico, numa determinada área. Contudo, o Encontro das Águas se estende por quilômetros no Rio Negro e no Rio Negro ao Solimões, inclusive em outros espaços, em outros municípios, que não estão contíguos a esse delimitado pela poligonal, mas que lá não estão tombados. O tombamento do Encontro das Águas é de um espaço delimitado por uma poligonal com coordenadas geográficas. O próprio IPHAN, por seu Conselho Consultivo, faz discussões sobre a adequação do tombamento para proteger o Encontro das Águas na reunião que avaliou esse tombamento em 2010. Os conselheiros colocam justamente essa discussão: se é adequado ou não já que se trata de um bem natural e com muitas peculiaridades interessantes, pois  estamos falando de um rio, ou melhor, do encontro de dois rios, mas não está se tombando os rios, mas um trecho, um espaço geográfico delimitado por uma poligonal.

Danilo Curado:

Boa noite para todo mundo, em particular para o Allan. Parabéns pela palestra. Eu sou do IPHAN. Trabalhei em várias superintendências do Iphan, morei na Amazônia, trabalhei em Rondônia.

Gostei muito da sua fala em relação à Ponte do Rio Negro, porque eu estive diretamente ligado às discussões junto à Câmara de Conciliação, e com vocês da AGU, junto com a Dra. Taís Helena. O principal instrumento que eu utilizei para fazer a defesa em relação ao patrimônio arqueológico, não só no caso da Ponte do Rio Negro, mas nos demais casos, pela questão da Lei dos Crimes Ambientais. Então, concordo plenamente com o senhor em relação ao instituto do tombamento para proteger algo que extrapola a questão cultural, quando esbarra na questão ambiental, como é o caso dos rios.

Eu quero saber a opinião do senhor em relação especificamente à Lei dos Crimes Ambientais e da sua visão de como ela pode vir a continuar a proteger o patrimônio cultural como um todo, não só o arqueológico, mas de forma holística para todo o patrimônio cultural?

Allan:

O direito penal busca construir uma tutela daqueles bens que são mais sensíveis aos nossos valores sociais. Ele vem justamente fazer essa proteção. Ele protege a vida, o patrimônio, entre outros bens jurídicos. E quando se coloca os crimes ambientais, você tem a perspectiva do valor que se atribui aos bens ambientais porque eles conferem qualidade de vida.

A lei dos crimes ambientais traz um capítulo, ou seja, alguns tópicos, que vão justamente tratar de eventuais danos ao patrimônio cultural. Acredito que ela deve ser repensada: pela maneira como é estruturada, talvez essa lei mereça uma revisão. Alguns vão defender que deve haver mudanças sobre a forma de punir os danos ao patrimônio no sentido de que se esse patrimônio for cultural, deve ter algum aumento de pena, uma sanção mais grave. Mas acredito que tem que ser construído um aparato no campo do direito penal, mais específico, para a questão do patrimônio cultural, realmente fazendo essa reflexão para a sua adequação, construindo uma proteção própria para os bens culturais.

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Perceba que temos um conjunto de diferenças, pois, se olhamos, por exemplo, para a ocorrência de um dano ambiental, muitas vezes sua recuperação pode ocorrer com a recuperação do espaço; às vezes, simplesmente evitando a -intervenção humana é possível assegurar o restabelecimento do equilíbrio ambiental. Dependendo do tipo de dano, com o transcurso do tempo, aquele espaço pode ter uma determinada recuperação. E isso você não observa com relação ao patrimônio cultural, cuja recuperação demanda recomposição, se necessário, se possível for, porque às vezes, dependendo da deterioração ou da destruição que se faça, você não consegue recompor o seu aspecto físico, a estrutura física dos bens culturais –na maioria das vezes, únicos e insubstituíveis. Então julgo necessário fazer uma reflexão maior sobre a adequação da lei de crimes ambientais para a proteção do patrimônio cultural. Acho que devemos construir, pensar um aparato próprio para o patrimônio cultural.

Marisa:

Nós estamos caminhando para o encerramento e eu tenho duas questões aqui. Vou fazer juntas a da Cristina e a do Wenner, porque elas são complementares. Daí passamos para a finalização. A Cristina pergunta: Os bens culturais, sejam materiais ou imateriais, gozam do aparato protetivo ambiental? E o Wenner pergunta: Quando o bem é imaterial, de que forma se faz essa proteção?

Allan:

É interessante pensar essa questão dos bens imateriais, pois estamos pensando em manifestações culturais. Poderíamos enquadrar nessa conceituação a cidade de Parintins, no Amazonas, que realiza o Festival dos Bois Garantido e Caprichoso.

Essa manifestação cultural se enquadra como sendo um bem cultural imaterial, porque não teria um suporte físico. Ainda assim, acredito que ela até tenha, porque as manifestações culturais de festejos que nós temos possuem um espaço, um local onde são realizadas. É um espaço mutável, que se transforma. Você não tem claramente um suporte físico sobre o qual se possa dizer: “esse suporte físico representa aquilo”,  mas você tem um festejo, tem um espaço onde ele é realizado.

E a forma com que se faz a proteção desse patrimônio cultural imaterial é por meio do Registro dessas manifestações em livros como o “Livro de Registro das Celebrações”, disciplinado no âmbito federal pelo Decreto nº 3.551, de 2000. Essa forma de salvaguarda do patrimônio imaterial deve ser objeto de reflexão, porque os nossos valores mudam, a forma como os festejos são realizados mudam. Se olharmos há 50 anos a forma como o festival de Parintins era realizado, percebe-se uma grande diferença quando comparada à maneira como é realizado hoje.

Então, além de realizar o registro, temos que ter o cuidado para que ele não seja objeto de engessamento ou que ele venha ditar a forma como deve ser feita determinada manifestação cultural por causa desse registro. Deve-se fazer um registro a título de certificar, indicar a importância dele, bem como das mudanças que venham a ser feitas – mas não engessar essas mudanças, essas transformações das manifestações culturais.

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Então, sob a perspectiva do patrimônio imaterial, sob a ótica do direito do patrimônio cultural, dos direitos culturais, há o Registro dessas manifestações culturais como um instrumento de salvaguarda, de proteção.

Sob a perspectiva do direito ambiental, poderíamos pensar que muitas dessas manifestações precisam de um espaço físico para serem realizadas, ainda que se diga que elas são imateriais. Como se precisa de um espaço, então que seja assegurada, que seja mantida a existência desses espaços, para que eles possam servir de local para a realização dessas manifestações.

Marisa:

Nosso tempo está curto, mas ainda temos uma última pergunta antes de encerrar. O Fernando questiona: até que ponto a nossa legislação anda em conjunto com as determinações da Unesco na questão do patrimônio cultural? Como está essa questão?

Allan:

A Unesco propõe uma mudança de paradigma, de modelo. Se olharmos para a Unesco e para o nosso texto constitucional, nós estamos bem à frente em vários pontos com a questão da democratização da cultura. Vou fazer o seguinte recorte: se nós olharmos para o Decreto-lei 25/1937, que iniciou a questão da proteção do patrimônio cultural, era considerado patrimônio cultural e ainda está presente essa vertente, mas ela foi ampliada pela Constituição de 1988: passou-se a incluir aquele conjunto de bens que tivesse relação com os grandes feitos da história ou que fossem excepcionais em alguma medida. Teria que ser uma obra arquitetônica, um quadro de um grande pintor, tinha que ter essa ideia de excepcionalidade, de monumentalidade, para ser protegido pelo Decreto-lei 25/1937.

Essa concepção de monumentalidade e excepcionalidade perdurou durante um bom tempo,  seguindo ainda hoje como uma vertente presente para a proteção do patrimônio cultural material, mas a Constituição de 1988 cria outras perspectivas para a proteção do patrimônio cultural, que consiste justamente na ideia de referencialidade. A ideia de monumento, de excepcionalidade, de beleza cênica, daqueles bens que o olhar é capaz de identificar porque são grandiosos, ou que correspondem a uma época passada, porque são grandes construções de obras arquitetônicas, são substituídos pela concepção de referências culturais. A Constituição de 1988 se afasta dessa vertente, para traçar uma nova perspectiva no sentido da democracia cultural, porque o valor cultural é definido a partir da ideia de referência à identidade, à ação e à memória dos grupos formadores da sociedade brasileira. E para exemplificar essa mudança, vamos olhar para a Região Norte e perceber que o tombamento da casa de Chico Mendes é um exemplo dessa mudança.

O IPHAN promoveu na região norte uma série de tombamentos de bens que são atrelados ao período da borracha, em que estão protegidos bens culturais segundo um aspecto de monumentalidade, como o Teatro Amazonas em Manaus. Mas nós temos o tombamento da casa de Chico Mendes, que não é realizado por causa da sua monumentalidade ou da sua excepcionalidade arquitetônica, mas porque possui valor de referência cultural, pelo significado que possui. Para isso, nossa Constituição de 1988 dá um passo importante enquanto as convenções da Unesco ficam ainda atreladas ao patrimônio da humanidade, muito atrelada ainda a identificar nos países aqueles monumentos que são excepcionais, com uma perspectiva de patrimônio cultural e de valores culturais europeus, e não uma ampliação maior, em que se possa colocar ou inserir as manifestações de outros povos, de outros países que não estejam no eixo europeu e que não tenham grandes monumentos, grandes obras arquitetônicas, mas que possuem manifestações culturais que são referência à sua identidade, à sua ação e memória, e que devem ser valorizadas.

A UNESCO está caminhando de certa forma nesse sentido, mas nós, com a nossa Constituição, não estamos deixando muito a desejar no plano normativo com essa abertura que o documento concede. Mas no plano da concretização e da realização da proteção do patrimônio cultural, ainda temos muito que caminhar, há muito ainda a ser feito nesse processo de democratização, de uma maior legitimação, de uma maior participação da comunidade.

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A sensação que eu tenho, bastante vivida com o tombamento de todo o centro histórico de Manaus realizado  pelo IPHAN, é que as pessoas, os proprietários desses bens, têm muito mais a sensação de que o tombamento vem só restringir um direito que eles têm, o direito de propriedade. O tombamento é visto unicamente como um empecilho à livre disposição da sua  propriedade, pois compreende-se que o tombamento vem desvalorizar a sua propriedade e não agregar um valor cultural que pode ser utilizado e eventualmente explorado atividades turísticas e culturais.

Marisa:

Bem, chegamos ao final hoje. Allan, agradeço imensamente por você ter participado desse momento conosco, nessa troca de informações e conhecimentos, que com certeza será muito importante para todos nós e, principalmente, para os nossos alunos da especialização em Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania, que estão agora na fase de elaboração dos seus projetos para as intervenções culturais em nosso estado.

Eu queria agradecer também a todos vocês que acessaram, participaram e assistiram

Lembrando que as webconferências são divididas da seguinte forma: são dez ao total, sendo que cinco serão ministradas via grupo de estudos e pesquisas em direitos culturais e cinco serão ministradas por pesquisadores daqui. Dessa forma creio que conseguimos ser bem interdisciplinares, trazendo a visão jurídica, a visão antropológica, histórica, sociológica e daí por diante. Eu acho que dessa forma conseguiremos abarcar todas essas discussões.

Muito obrigado a vocês, obrigado ao pessoal que está aqui no apoio: a Raquel, a Nayanne, o Júnior, pois sem eles seria muito difícil realizarmos esse projeto. E a vocês, do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais.

Um grande abraço a todos, pessoal. Até a próxima webconferência.