PATRIMÔNIOSPOSSÍVEIS

Arte, Rede e Narrativas da Memória em Contexto Iberoamericano

131

Arte, Patrimônio e Tecnologia

Processos de Pesquisa, Educação Patrimonial e Criação Artística Vistos Pelos Sete Saberes Necessários para a Educação Do Milênio

Este artigo tem como objetivo relacionar os processos artísticos e pedagógicos expostos na tese de doutorado Processos de transmutação do sujeito criador e poéticas cartográficas sobre o habitar: Transposições entre arte, ciência, tecnologia e os saberes tradicionais para a construção de uma transpedagogia intersubjetiva, intercultural e multidimensional defendida junto ao Departamento de Escultura da Facultad dbe Bellas Artes de Granada na Espanha com os Sete Saberes para educação do futuro

elaborados pelo professor Edgar Morin.

Palavras-chave: processos criativos, educação patrimonial, interculturalidade.

Este articulo objetiva relacionar los procesos artísticos y pedagógicos expuestos en la tesis de doctorado Processos de transmutação do sujeito criador e poéticas cartográficas sobre o habitar: Transposições entre arte, ciência, tecnologia e os saberes tradicionais para a construção de uma transpedagogia intersubjetiva, intercultural e multidimensional presentada junto al Departamento de Escultura de la Facultad de Bellas Artes de Granada en Espana con los Siete Saberes necesarios para la educación del futuro desarrollados por el professor Edgar Morin.

Palabras-clave: procesos creativos, educación patrimonial, interculturalidad.

Autoria

Maurício de Camargo Teixeira Panella

Antropólogo e artista multimídia. Doutor pela Faculdade de Bellas Artes da Universidad de Granada- Espanha. Coordenador Adjunto da Linha de Pesquisa Encontros de Rua- A cidade como laboratório de experiências sensoriais/ Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pesquisador do Núcleo de Estética e Semiótica do Programa de Pós-Graduação/ Arquitetura e Urbanismo da UNB. Diretor, fundador e coordenador de projetos do Instituto Casadágua- Arte, educação e Sustentabilidade.


132

Apresentação

Aceitei o desafio de compor junto a tantos núcleos acadêmicos e não acadêmicos a tarefa de compreender, nomear e compartilhar intuições, saberes, experiências, sonhos e utopias. O processo de pesquisa unido ao processo criativo individual e coletivo finalmente é um caminho de sonho, um caminho de descoberta, um caminho de inquietação e ao mesmo tempo um caminho também à quietude.

Os projetos e reflexões aqui expressos foram os ingredientes que deram forma a tese de doutorado apresentada na Facultad de Bellas Artes da Universidad de Granada, Espanha. Tese de doutorado que tive o privilégio de ter como orientador, o escultor e professor, Victor Borrego. Os projetos que compõem a tese e que aqui apresento brevemente tomaram meus dias, meus anos. São projetos de vida. Por eles conheci o mundo e me conheci. As respostas que encontrei no caminho foram sendo compartilhadas de modo distinto. Utilizei-me de muitas linguagens. Cada elemento trabalhado, cada tecnologia apropriada, cada produto criado, cada palavra emitida, escrita; cada gesto, movimento, ritmo, melodia; cada cena, cada entrevista; cada metodologia pedagógica inventada e re-inventada, foram sendo os guias que orientaram o trajeto empreendido.

Para que fosse realizada esta trajetória de pesquisa multidisciplinar e criação artística foi necessário acessar distintos departamentos dentro de muitas universidades, foi necessário receber a permissão e o convite dos mestres tradicionais. As perguntas que foram sendo feitas direcionaram ao encontro com formas e conteúdos de saberes oriundos e produzidos em distintos locais. De alguma forma, um grande mérito deste processo foi a capacidade de enlaçar universidades, culturas e saberes provenientes de distintos locais geográficos. A maioria das informações organizadas e expostas na tese foram vivenciadas. Os nomes das pessoas que foram narradas, a grande maioria delas foram realmente acessadas. Os professores, os grupos de pesquisa, os departamentos são elementos que compõem um diário de campo. Neste caso o trabalho da tese de doutorado como um todo pode ser visto desde essa perspectiva: uma grande narrativa sobre os processos de pesquisa e criação. E o formato do trabalho finalmente se construiu da mesma forma como foram construídas as sessões de tantas oficinas junto a tantos coletivos que compartilharam de suas leituras de mundo, ou seja, também permeada e construída por narrativas subjetivas. No caso, finalmente, inclusive as minhas.

Neste círculo espiralesco de criações e movimentos, encontros e desencontros, subidas e descidas, voos e aterrissagens, muitos foram os autores lidos, muitas foram as teorias, as obras de arte visitadas. Teoricamente fui apontando nas narrativas quais foram os autores com quem estabeleci diálogos para justificar as propostas e ideias expostas, que me deram suporte e me ajudaram a nomear intuições; que me trouxeram certezas e incertezas; que me ajudaram a conhecer o mundo e a entender a mim mesmo, as minhas perguntas; que me auxiliaram a conectar com o sentido de repercussão que habita o coração humano. Sem este sentido de perceber e compreender o mundo que o outro vive e expõe, não haveria sonhos para a construção de um lugar e uma experiência mais harmoniosa entre os humanos. E foi por isso que a arte, o processo criativo, tornou-se o caminho por onde traçamos nossas trajetórias. Tem-se claro que pela sensibilidade artística o sentido humano mais iluminado pode ser acessado e compartilhado entre indivíduos de distintas culturas.

133

Por mais que os projetos apresentados na tese tenham sido abordados de modo transdisciplinar, sabendo e reconhecendo que pelos quais pode-se construir saberes, métodos e produtos, considero que finalmente o grande laço que abraçou todas as pontas e todos os tempos foi o processo educativo, de formação individual e coletivo.

As obras e investigações da tese de doutorado, realizada dentro de um departamento de escultura, recebeu orientações e inspirações que nasceram de processos criativos artísticos que também tinham como pretensão o desenvolvimento de experiências educativas, históricas, sociais, ambientais, espirituais e políticas. Isso incentivou bastante que nossos propósitos se direcionassem para a construção de processos artísticos que também fossem pedagógicos. Na descrição das propostas e dos projetos apresentados foi-se estabelecendo diálogos com alguns autores que também se dedicaram em refletir possíveis novos/antigos caminhos que auxiliassem na formação de um sujeito preparado para os desafios deste milênio.

Nas considerações finais desenvolvidas para a tese de doutorado tracei algumas relações entre resultados que conseguimos obter diante a realização dos projetos artísticos e pedagógicos dos últimos treze anos com as ideias que Edgar Morin (2000) elaborou sobre os Sete Saberes necessários para a educação do futuro. O objetivo deste artigo é compartilhar estas considerações finas da tese. Por cada saber exposto por este pensador, com quem vivi meu despertar acadêmico transdisciplinar e poético em 1995, e com quem tive a honra de conviver pessoalmente instantes fecundos inesquecíveis dentro da Escultura Casa Mãe Terra em 2003, compartilharei reflexões sobre o processo de pesquisa, de criação artística e de elaboração de métodos pedagógicos laboratoriais interativos e lúdicos.

Primeiro Saber: a cegueira do conhecimento e o conhecimento do conhecimento

Para Edgar Morin (2000), o primeiro saber necessário que se deve exercitar e acessar para a construção da educação deste milênio está relacionada a consciência que há que se ter de que o conhecimento que a humanidade produz são interpretações não permanentes. Isso quer dizer que cada nova descoberta, cada nova certeza deva já ser anunciada tendo em conta que pode ser revista, transformada e até mesmo negada. Há que se ter consciência do erro e da ilusão do conhecimento. Há que se estar aberto para o conhecimento produzido e construído por outras pessoas, outros departamentos, outras culturas, outras cosmovisões e que o conhecimento é algo dinâmico, e que está em eterna transformação.

A orientação de um pensamento que não se abriu a outras formas de compreender a vida gerou uma infinidade de conflitos entre culturas, que finalmente gerou a desestruturação econômica, política e social, e uma enorme devastação ambiental em muitos rincões do planeta. Morin acredita que é imprescindível a efetivação de um conhecimento sobre o próprio conhecimento. Ou seja, que é necessário que se tenha consciência sobre o próprio processo de desenvolvimento dos pensamentos:

O conhecimento do conhecimento deve aparecer como necessidade primeira, que serviria de preparação para enfrentar os riscos permanentes de erro e de ilusão, que não cessam de parasitar a mente humana. Trata-se de armar cada mente no combate vital rumo à lucidez (MORIN, 2000, p. 14).

134

Preparar o ser humano para entender o seu próprio caminho, suas próprias capacidades mentais, espirituais e emocionais parece ser uma necessidade de primeira ordem para a construção de um modelo menos violento, preconceituoso, individualista e destruidor.

Quando iniciei as primeiras investigações sobre os processos construtivos arquitetônicos em terra, de alguma forma iniciei também um mergulho sobre as tecnologias que muitas culturas do mundo desenvolveram para poder construir suas moradias com os elementos naturais de suas localidades. A forma com que cada cultura, inserida e localizada em cada região distinta do planeta efetivou para erguer suas moradias me levaram não somente a acessar os saberes que foram elaborados para a construção em si, mas também me conduziram a reflexões sobre questões de natureza mais íntima. Ou seja, da importância de se ter um ninho de proteção, da necessidade de organização espacial para o desenvolvimento individual e coletivo. Adentrar no espaço íntimo das moradias foi acessar os lugares mais silenciosos aonde se ouvem gritos e risadas. Onde se vive o repouso e onde se vive o desespero. Onde se vive o presente, o passado e o futuro. Onde se encontra a alegria e a tristeza, o sonho, a morte e a esperança. Onde se encontra a poltrona e o colo do avô e aonde se visualiza o berço do recém-nascido.

Figura 1 (casa de taipa tradicional do Nordeste brasileiro; construção de oca no Xingu; desenho de palhoça circular indígena do Brasil)
Figura 2 (casa de taipa tradicional do Nordeste brasileiro; construção de oca no Xingu; desenho de palhoça circular indígena do Brasil)
Figura 3 (casa de taipa tradicional do Nordeste brasileiro; construção de oca no Xingu; desenho de palhoça circular indígena do Brasil)
Figura 4 (etapas do processo construtivo da escultura pública Casa Mãe Terra)
Figura 5 (etapas do processo construtivo da escultura pública Casa Mãe Terra)
Figura 6 (etapas do processo construtivo da escultura pública Casa Mãe Terra)
Figura 7 (inauguração com Edgar Morin; escultura em taipa; processo de colocação de mosaicos em visita de escola na escultura).!
Figura 8 (inauguração com Edgar Morin; escultura em taipa; processo de colocação de mosaicos em visita de escola na escultura).
Figura 9 (inauguração com Edgar Morin; escultura em taipa; processo de colocação de mosaicos em visita de escola na escultura).
135

A investigação sobre métodos arquitetônicos com elementos naturais fez-me perguntar e pesquisar sobre a origem dos materiais que se utiliza para erguer uma moradia. As reflexões sobre a origens dos materiais orientou-me a ver como as culturas tradicionais ainda tem consciência sobre todas as etapas, elementos e processos que envolvem o empreendimento da construção de um lar. Essa forma de perceber as etapas e o conhecimento da origem dos materiais imprime nestas culturas uma consciência também relacionada aos ciclos naturais. As culturas que constroem seus telhados com palhas de palmeiras na Amazônia sabem e conhecem os ciclos das próprias árvores, sabem quais são as épocas apropriadas para a retirada de suas folhas. Essa sabedoria baseada na observação da natureza garante a manutenção para as gerações futuras. As culturas tradicionais cultivam um pensamento que reconhece a sua similitude com o ciclo das árvores. Entre os indígenas nahuatl do México quando alguém quer saber a idade de outra pessoa, pergunta-se: ¿Quexqui xihuitl ticpia? Quantas vezes você trocou tuas folhas?

As experiências junto aos distintos oleiros e louceiras da Península Ibérica e do Nordeste brasileiro me levaram a conhecer os sentidos de enraizamento humano. Já havia estudado e vivenciado os processos de construção de uma casa, e então me entregava aos mistérios e saberes relacionados a produção dos utensílios que proporcionam a manutenção da vida para as famílias e comunidades. Conhecer a fabricação de panelas, de potes para água, de braseiros para cozinhar o alimento, fez-me refletir sobre as necessidades básicas que cotidianamente temos que superar para podermos viver dignamente na Terra. O acesso aos saberes milenários que revelam qual é o barro que é bom para produzir um artefato; em como se queima uma louça - a temperatura adequada para se fundir o barro; me revelaram não somente as técnicas, como também me levaram a saber que em distintos locais da Terra, distintas culturas, numa mesma época, empreenderam essa busca para entender a natureza e então transformar suas formas de vida nómadas pela conservação da água e pelo cozimento do alimento.

Figura 10 (Dona Francisca e Socorro, louceiras tradicionais da comunidade de Sobrado/RN retirando utensílios de cerâmica do forno; Dona Glória, artesã de Sobrado/RN expondo suas peças de cerâmica na Escultura Casa Mãe Terra ao lado da Professora antropóloga Maria da Conceição de Almeida/Grecom-UFRN)
Figura 11 (Dona Francisca e Socorro, louceiras tradicionais da comunidade de Sobrado/RN retirando utensílios de cerâmica do forno; Dona Glória, artesã de Sobrado/RN expondo suas peças de cerâmica na Escultura Casa Mãe Terra ao lado da Professora antropóloga Maria da Conceição de Almeida/Grecom-UFRN)

Consequentemente a apropriação dos conhecimentos sobre a construção de moradias, a construção de artefatos da casa, também mergulhei na apreensão dos saberes relacionados aos cultivos dos alimentos. O que finalmente foi me direcionando aos processos ritualísticos que as culturas humanas tiveram que desenvolver para compreender a intrínseca relação com o tempo da natureza, do sol, das chuvas, das estrelas. Adentrar nos rituais de plantio e de colheita tradicional das culturas tradicionais da América me levou a adentrar no tempo das constelações, no tempo das gerações, no tempo do sol e no tempo da lua.

Figuras 12, 13, 14 e 15: (desenho da raiz da mandioca; anciã da comunidade de Tabatinga/RN raspando mandioca em tradicional casa de farinha; Sr Didi, agricultor mestre em plantio de mandioca da comunidade de Tabatinga/RN em evento sobre colheita de mandioca na escultura Casa Mãe Terra; escritor indígena Daniel Munduruku, em evento cantando e contando lendas sobre mandioca no entorno da escultura pública)
136

Desta forma acredito que pelas experiências vivenciadas, pelos projetos empreendidos, que tiveram o elemento terra como guia que orientou as criações e a construção do conhecimento apresentado pude submergir de modo profundo sobre o conhecimento do conhecimento que a humanidade produziu desde a Idade do Ouro quando iniciamos a desenvolver a agricultura e os artefatos de cerâmica. De alguma forma esse mesmo exercício em compreender a história humana fez com que eu mesmo, como sujeito, empreendesse uma senda de auto-compreensão sobre os meus próprios processos subjetivos. Tempo, memória, narratividade e conhecimento finalmente foram e serão os guias para poder habitar a Terra com mais consciência.

Segundo saber: construir o conhecimento pertinente

O segundo saber que Morin acredita necessário para ser desenvolvido pelo sistema educacional refere-se à capacidade de contextualização e complexificação de um conhecimento que organiza e reorganiza a relação de elementos singulares com a globalidade das situações:

A era planetária necessita situar tudo no contexto e no complexo planetário. O conhecimento do mundo como mundo é necessidade ao mesmo tempo intelectual e vital. É o problema universal de todo cidadão do novo milênio: como ter acesso às informações sobre o mundo e como ter a possibilidade de articulá-las e organizá-las? Como perceber e conceber o Contexto, o Global (a relação todo/partes), o Multidimensional, o Complexo? (MORIN, 2000, p. 36).

O exercício das pesquisas desenvolvidas durantes os últimos treze anos levou-me a questionar os modelos formais, unidirecionais em busca de uma cosmovisão mais abrangente, complexa, intercultural. A decisão de investigar profundamente outras formas de interagir e conhecer o mundo junto a muitas comunidades tradicionais proporcionou a compreensão da fissura do saber fragmentado acadêmico. Foi a convivência com culturas que compõem seus dias por meio de tarefas cotidianas que permearam a compreensão da totalidade que envolve todas as atividades. Como foi já mencionado nas considerações sobre o primeiro saber exaltado por Morin, viver, investigar e criar sobre os processos de transformação do elemento terra em uma moradia, em um artefato domiciliar e num alimento, me permitiu alcançar uma compreensão do todo que liga as partes que aparentemente poderiam ser vistas como soltas e sem união.

No entanto nossa empreitada assumiu o desafio de utilizar o próprio processo de evolução tecnológica, apropriando-nos dos próprios artefatos digitais para poder refletir sobre as formas de conhecimento tradicional, podendo assim atribuir a elas o sentido multidimensional que elas abrangem silenciosamente. A realização de um projeto de pesquisa e a produção de uma obra de arte mediada por um elemento natural como a terra transversaliza questões singulares em direção a contextualização de um tema que toca o sujeito, a comunidade, a sociedade e o planeta como um todo.

As formas como fomos compreendendo as dinâmicas culturais e ritualísticas de algumas populações nos foram auxiliando pouco a pouco a desenvolver tecnologias que permeassem uma experiência de compreensão da vida de modo multidimensional. As experiências xamânicas que se teve junto com às culturas indígenas americanas favoreceram na composição de nossos próprios sentimentos e entendimentos do mundo local e global. Estas mesmas experiências levaram a uma apreensão mais subjetivada de mundo. E estas apreensões singulares e multidimensionais pessoais se tornaram finalmente situações que proporcionaram a inquietação necessária para se criar portais, oráculos, tecnologias e métodos que permitissem reverberar esse sentimento multidimensional.

Figura 16. Crianças experimentando a instalação artística pedagógica do Projeto De Fora Adentro
137

A criação dos portais multidimensionais como a Escultura Casa Mãe Terra e a instalação dos Mapas Gigantes tinham como objetivo a extensão de uma experiência sensorial contextualizada por onde outros sujeitos pudessem compreender suas experiências subjetivas de modo coletivo. A obra Cidade Vestida concebida e gestada junto à dançarina Ana Claudia Viana viabilizou a concretização de um processo artístico que religou, corpo, cidade e cosmos. A projeção de imagens aéreas no corpo da dançarina que se movimentava aos sons e ritmos da cidade reuniram dimensões que poderiam ser vistas de modo separado. E se uniram na tentativa de sensibilizar o público em direção a uma consciência que reúne corpo e cidade, cultura e natureza.

Figura 17. Cartaz de divulgação da obra premiada Cidade Vestida

A criação de mapas gigantes por meio da ampliação das fotos de satélite proporcionou no público visitante a apreensão da totalidade das cidades, por onde o sujeito pode compreender sua existência pessoal, localizando a sua própria moradia dentro do todo de uma grande cidade. Esta visualização verticalizada das cidades proporcionou no público um redimensionamento da compreensão fragmentada que se tem dos seus lugares. O olhar individualista e ego-centrado de alguma forma foi dissipado por instantes sendo substituído por uma compreensão mais comprometida com o cuidado dos espaços naturais, dos espaços públicos, consciente da necessidade de projetos urbanísticos melhor estudados que compreendam a totalidade das relações que são estabelecidas em grandes cidades que reúnem muitos indivíduos: “É preciso recompor o todo. É preciso efetivamente recompor o todo para conhecer as partes” (MORIN, 2000, p. 37).

Figura 18: visitantes interagindo com o mapa gigante do Projeto De Fora Adentro.
Figura 19: visitantes interagindo com o mapa gigante do Projeto De Fora Adentro.
Figura 20: visitantes interagindo com o mapa gigante do Projeto De Fora Adentro.

A experiência de compor as instalações dos mapas gigantes proporcionou também o diálogo com tantos outros departamentos dentro das Universidades. O projeto “De Fora Adentro” foi compreendido por pesquisadores da área da psicologia, da arquitetura e do urbanismo, por profissionais formados em ecologia, por antropólogos, por artistas, por teólogos...A ferramenta do mapa gigante auxiliou a reunião de profissionais de distintas áreas que conseguiram ver como suas discussões se encontravam numa mesma experiência sensorial de apreensão do espaço urbano. Acredito que o Projeto “De Fora Adentro” demonstra bem como uma proposta pode ser geradora de encontros e reflexões transdisciplinares que contextualizem os saberes.

Terceiro saber: reaprender a nossa condição humana

Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e não separá-lo dele. Como vimos, todo conhecimento deve contextualizar seu objeto, para ser pertinente. “Quem somos?” é inseparável de “Onde estamos?”, “De onde viemos?”, “Para onde vamos? (MORIN, 2000, p.37)

Edgar Morin anuncia a importância de religar os saberes produzidos pela ciência para assim auxiliar o ser humano a integrar esses conhecimentos em suas próprias vidas conectadas e conscientes de seu papel dentro da família, dentro da sociedade, dentro do mundo, dentro do cosmos. O destino terrestre que a humanidade tem que assumir parece ser na visão deste autor uma necessidade para podermos compreender o próprio desenvolvimento de nosso sistema de auto-organização.

138

“Como seres vivos deste planeta, dependemos vitalmente da biosfera terrestre; devemos reconhecer nossa identidade terrena física e biológica” (MORIN, 2000, p.50). A consciência de nossa condição terrestre é que nos permitirá auto-organizarmos de modo sustentável e em consonância com o tempo e os ciclos da Natureza, da Terra, do Cosmos. Os conhecimentos produzidos pelos pesquisadores da cosmologia, da astronomia, das ciências da terra, devem estar unidos, integrados aos saberes produzidos pela agroecologia, pela antropologia, pela psicologia, pela literatura, pela medicina. A fragmentação do saber não viabilizou o final das guerras, da fome e das doenças. Será que não houve, ou não haveria, outras formas de compreender a relação do ser humano com seus lugares de modo mais harmónico, equilibrado, saudável e com paz? A resposta é bastante complexa e cheia de controvérsias. Preferi então por conta própria investigar modelos antigos, acessar formas e cosmovisões que não fatiam a experiência terrestre.

A experiência realizada pelo “Proyecto de Difusión del Patrimonio en Video y TV ” em Veracruz no México, apresentado também na tese de doutorado, mostrou-me pelo contato com as tradições Mesoamericanas que já foram desenvolvidas pedagogias que não fragmentaram o saber e que se preocuparam de fato em orientar o ser humano sobre seu lugar no cosmos. Há muitos estudos realizados na área arqueoastronomia que exemplificam a reunião dos saberes astronómicos com os saberes da engenharia e da arquitetura. Há muitos estudos feitos sobre astronomia agrária, sobre os saberes relacionados aos ciclos das chuvas e os ciclos das plantações. Podemos acessá-los. Há templos erguidos para os deuses das chuvas e há templos para as sementes de milho. Há calendários, há pinturas, há contas e há matemáticas. Alguns destes saberes pré-colombianos ainda persistem ao tempo e em algumas comunidades tradicionais ainda se pode encontrar os reflexos de uma tradição que expõe o ser humano a si mesmo, em sua comunidade e no mundo.

Figura 21. Imagem do vídeo realizado pelo Proyecto de Difusión del Patrimonio en Video y TV sobre o ritual de colheita de milho na Huasteca-Veracruz/México

O processo construtivo da escultura Casa Mãe Terra trouxe-me a experiência de construir com elementos naturais. Recolher as madeiras no bosque, saber eleger, reconhecer as espécies, saber seus ciclos relacionados ao período da lua e das chuvas seguramente imprimiu em mim uma maior consciência da relação que uma proposta artística tinha com uma proposta educativa e ambiental. Adentrar no bosque com um filho de caçador, conhecedor das lendas e das entidades que habitam os bosques imprimiu na experiência uma conexão muito fina com o próprio ciclo da natureza.

Figura 22: Artesões retirando madeira na mata; Duda, taipeiro que participou da construção da escultura observando movimento da mata; Duda em processo construtivo com as madeiras retiradas já no Parque das Dunas aonde foi construída a escultura pública.
Figura 23: Artesões retirando madeira na mata; Duda, taipeiro que participou da construção da escultura observando movimento da mata; Duda em processo construtivo com as madeiras retiradas já no Parque das Dunas aonde foi construída a escultura pública.
Figura 24: Artesões retirando madeira na mata; Duda, taipeiro que participou da construção da escultura observando movimento da mata; Duda em processo construtivo com as madeiras retiradas já no Parque das Dunas aonde foi construída a escultura pública.
139

Da mesma forma, sobre a relação que podemos traçar entre o processo criativo da escultura Casa Mãe Terra com o terceiro saber enunciado por Morin (2000), sobre a condição humana, posso dizer que pelo processo vivido acessei a temporalidade comum que muitas culturas do planeta viveram para produzirem seus utensílios de cerâmica. Acessei de igual forma a temporalidade das pinturas das cavernas. Morin (2000) insiste em afirmar que não devemos esquecer que nossa existência é passageira. Que ainda estamos num infinito processo de transformação e descoberta que caminha juntamente com a evolução do sistema solar e do Universo. Poder visualizar o tempo das pinturas rupestres, acessar o tempo neolítico da queima dos primeiros artefatos de barro cozido, mergulhar nas tradições arquitetônicas feitas com barro, gerou em mim a oportunidade de visualizar o tempo curto-longo da humanidade, e de mim mesmo.

Ao olharmos para trás e reconhecermos os processos históricos podemos enfim imaginar o que queremos para o futuro. Ao olharmos para os conhecimentos produzidos podemos olhar para o que fomos construindo para nós mesmos. E o que queremos? Sabemos para onde queremos ir? Sabemos aonde de verdade estamos? Morin nos chama atenção para a relação triádica indivíduo/sociedade/espécie. Pelo projeto Casa Mãe Terra pude mergulhar na minha história pessoal, nas minhas memórias, nos meus sonhos individuais. Por ele pude compreender meu papel social como pai de família, como pesquisador, como artista, como pedagogo. Pelo mesmo projeto acessei os saberes pré-históricos, neolíticos, coloniais, modernos e contemporâneos que nossa espécie vem desenvolvendo.

Figura 25: Processo de elaboração da obra Baobarro que deu origem a escultura pública Casa Mãe Terra.
Figura 26: Processo de elaboração da obra Baobarro que deu origem a escultura pública Casa Mãe Terra.
Figura 27: Processo de elaboração da obra Baobarro que deu origem a escultura pública Casa Mãe Terra.

A realização de projetos laboratoriais e coletivos parece ser uma boa forma para que desenvolvamos uma pedagogia serena que contribua para o entendimento de nossa condição humana. E a linguagem metafórica, simbólica e poética parece ser um caminho bastante interessante para auxiliar neste processo.

Quarto saber: reconhecer a identidade terrena

Se a noção de pátria comporta identidade comum, relação de filiação afetiva à substância tanto materna como paterna (inclusa no termo feminino-masculino de pátria), enfim, uma comunidade de destino, então podemos fazer avançar a noção Terra- pátria (MORIN, 2000, p. 76).

O quarto saber que Morin apresenta como necessário para a educação do futuro se refere ao reconhecimento da jornada humana na Terra em direção ao conhecimento e a ocupação quase total do planeta. O espírito conquistador que impulsionou o ocidente a explorar os quatro cantos da terra promoveu um salto em direção a era planetária, na qual não sobrariam mais terras desconhecidas e que fariam com que passados quinhentos anos esse planeta se tornasse pequeno. A conflituosa experiência colonizadora deixou marcas dolorosas em muitos povos que foram massacrados pelos conquistadores europeus. Não há dúvidas que a oportunidade de conhecer o diferente poderia ter sido menos trágica. Muitos países e culturas ainda vivem e viverão os pesares de uma exploração nada humana.

140

O espírito colonizador infelizmente direcionou suas capacidades mentais em direção ao desenvolvimento de uma cultura exploratória tanto da mão de obra humana, quanto da matéria prima da natureza. Nos últimos quinhentos anos os anseios de conquista levaram ao ser humano a desenvolver uma tecnologia com a força necessária para ultrapassar barreiras físicas e naturais, com a força necessária para controlar mentes e espíritos e para controlar a vida em baixo dos mares.

As ferramentas desenvolvidas por tantos laboratórios criaram os meios necessários para averiguar os temas que particularmente a cada uma interessava. Assim os astrônomos entendem melhor o céu. Os agrônomos criam sementes. Os arquitetos e engenheiros criam novas ferramentas para suas obras; os biólogos conhecem o interior das células. No entanto a consciência e o respeito pela própria vida humana e pelas demais formas de vida na Terra parece que não evoluíram na mesma direção que o avanço científico, senão que em caminho reverso. Edgar Morin então aponta para a necessidade de que os conhecimentos produzidos pela tecnoesfera não sigam sendo utilizados para o controle e a exploração da vida terrena, se não que sejam apropriados pela humanidade para a construção de uma mentalidade e de um espírito mais consciente que reconhece a fragilidade da vida na Terra: “Este é o problema crucial que se apresenta logo no início do século XX: ficaremos submissos à tecnosfera ou saberemos viver em simbiose com ela?” (MORIN, 2000, p. 74).

Morin crê que para ocorrer essa mutação de perspectiva no espírito humano há que se desenvolver:

[...] uma consciência antropológica, que reconhece a unidade na diversidade; uma consciência ecológica, isto é, a consciência de habitar, com todos os seres mortais, a mesma esfera viva (biosfera): reconhecer nossa união consubstancial com a biosfera conduz ao abandono do sonho prometeico do domínio do universo para nutrir a aspiração de convivibilidade sobre a Terra; uma consciência cívica terrena, isto é, da responsabilidade e da solidariedade para com os filhos da Terra; e uma consciência espiritual da condição humana que decorre do exercício complexo do pensamento e que nos permite, ao mesmo tempo, criticar-nos mutuamente e autocriticar-nos e compreender-nos mutuamente (MORIN, 2000, p. 76).

Na terceira parte da tese, quando apresento as pesquisas, criações e métodos oriundos do Projeto “De Fora Adentro” tive como objetivo central revelar que algumas práticas e pedagogias desenvolvidas pela cosmovisão Mesoamericana poderiam ser reunidas às tecnologias desenvolvidas pelos laboratórios espaciais que mapeiam e vasculham a terra. Ao reunir as imagens de satélite que as secretarias de urbanismo encomendam às agências espaciais para poder estudar e controlar o desenvolvimento das grandes cidades pude criar portais, instalações, oráculos que levaram o público a experimentar e a provar as sensações de sobrevoar a Terra sem retirarem os pés do chão. A verticalidade do olhar que as imagens espaciais compostas em mapas gigantes proporcionaram no público viabilizaram a compreensão do todo que abrange o espaço urbano das cidades. A verticalidade do olhar poético possibilitou o público a enxergar a composição total a qual o indivíduo está inserido dentro de uma cidade.

Figura 28: gráfico que relaciona os conteúdos teóricos da pesquisa com os elementos tecnológicos utilizados para a elaboração das instalações dos mapas gigantes.
141

Essa forma de observar o mundo está inspirada por uma pedagogia que instiga o indivíduo a se localizar espacialmente e temporalmente na Terra. As primeiras noções espaciais sobre as quatro direções, norte sul, leste e oeste; o entendimento da composição das áreas naturais e das áreas urbanas; a localização dos rios, do mar, dos pontos turísticos das cidades; ver o mundo de cima ofereceu a condição propícia para que cada pessoa voltasse sobre a sua experiência sobre a Terra. Ver a Terra de cima mostra a fragilidade de nosso ecossistema, mostra a atividade humana que degrada a Natureza. Ao mesmo tempo que sensibiliza e emociona por proporcionar uma composição que insere o indivíduo no mundo, que o faz conhecer seu lugar fazendo nascer um sentimento de pertencimento e cuidado com a biosfera.

Quinto saber: Enfrentar as Incertezas

“As ideias e teorias não refletem, mas traduzem a realidade, que podem traduzir de maneira errônea. Nossa realidade não é outra senão nossa ideia da realidade” (MORIN, 2000, p. 85)

O quinto saber apresentado por Edgar Morin refere-se à condição que o ser humano desenvolveu para estar apto para enfrentar as incertezas que estamos e estaremos envolvidos. O autor acredita que a experiência de construirmos e descontruirmos teorias nos últimos séculos seria suficiente para deixar-nos já preparados para uma nova posição diante às novas descobertas que seguramente colocarão abaixo as certezas por nós absorvidas e tidas um dia como verdadeiras.

Finalmente parece que também dentro das próprias Universidades os próprios cientistas se dão conta de que os experimentos e métodos de análise de resultados podem e devem ser revogados. E desta forma, a ideia de progresso vem sendo abandonada por uma compreensão que reconhece a incerteza e a fragilidade das teorias. Morin conclui que “O abandono do progresso garantido pelas ‘leis da História’ não é o abandono do progresso, mas o reconhecimento de seu caráter incerto e frágil. A renúncia ao melhor dos mundos não é, de maneira alguma, a renúncia a um mundo melhor” (MORIN, 2000, p. 85).

Como estratégia para conviver com a incerteza que nos ronda, incerteza essa que poderia gerar uma atitude inerte, Morin sugere que deveríamos desenvolver uma forma de pensamento que reconhecesse que os riscos que aparentemente reforçariam uma falta de esperança fossem tomados como uma oportunidade para pensar em novas soluções e possibilidades.

Novamente as experiências realizadas pelo Projeto “De Fora Adentro” parece que compartilham desta visão que não renuncia a construção de um mundo melhor. O despertar de uma atitude consciente que é promovida pela experiência verticalizante ao caminhar pelo mapa, promove não só a compreensão da totalidade das partes que compõem uma cidade. A experiência de adentrar na cidade, de adentrar nas ruas, nos bairros e na própria casa abre no sujeito o sentimento de potência em querer compreender mais com os próprios olhos, com a própria experiência. Sem almejar construir um saber que é depositado no indivíduo, o Projeto “De Fora Adentro” conduz o sujeito a sentir-se capaz de compreender a sua própria condição como cidadão. Ter a própria vida em mãos, gerar sentimentos que fortalecem a autonomia do indivíduo parece também ser um bom caminho para não ficarmos dependentes das verdades e doutrinas.

Figura 29: crianças brincando e descobrindo o mundo sobre a instalação.
Figura 30: crianças brincando e descobrindo o mundo sobre a instalação.
142

Quando no Projeto “Casa Mãe Terra” iniciei a pesquisar qual seria a melhor técnica para utilizar na construção da escultura, averiguei junto ao arquiteto e ao engenheiro que me auxiliaram no processo construtivo, que a técnica da taipa vinha sendo descartada pelo sistema político pois este estava atrelado às grandes empresas que produzem cimento e cerâmica industrial. O não incentivo às técnicas tradicionais tornam as pessoas dependentes do sistema. Mas o curioso é que mesmo o sistema político desprezando e incentivando o abandono da técnica popular da taipa, os profissionais da engenharia identificaram essa técnica como a mais adequada para reconstruir as moradias do município de Mossoró, interior do Rio Grande do Norte, quando esta cidade sofreu os tremores de um terremoto forte no ano de 1986, pelo qual muitas casas caíram ao chão. Ou seja, mesmo numa situação e numa época aonde a arquitetura desenvolve projetos tão fenomenais, especialistas revogam a mesma evolução do saber tecnicista para optar por uma técnica construtiva que entrelaça madeiras tornando a casa mais resistente aos tremores. Esse simples exemplo demonstra como que o passo que damos em direção ao novo nem sempre tem que desprezar o que um dia foi desenvolvido. O sentido do progresso não deve ser mais em direção ao progresso tecnicista e produtivo. A evolução que a humanidade deve agora desenvolver é a caminho da cooperação e do cuidado deste tão pequeno Planeta. A evolução deve ser a caminho do diálogo, da tolerância e do respeito entre as diferenças.

Sexto saber: Ensinar a compreensão pelo diálogo

Nunca se ensina sobre compreender uns aos outros, como compreender nossos vizinhos, nossos parentes, nossos pais. O que significa compreender? A palavra compreender vem de compreendere em latim, que quer dizer: colocar junto todos os elementos de explicação, quer dizer, não ter somente um elemento de explicação, mas diversos. É preciso compreender a compaixão que quer dizer sofrer junto, é isto que permite a verdadeira comunicação humana (MORIN, 2000, p. ???).

A falta de diálogo, a falta de interesse em erguer os olhos ao outro e em escutar a voz dos outros permanece sendo um grande obstáculo para o desenvolvimento do espírito humano. Essa limitação está tatuada na alma humana, atingindo e contaminando as relações pessoais mais próximas entre irmãos até as mais longínquas entre culturas desconhecidas. Essa limitação encontra-se bloqueada pelo egocentrismo que não permite que o sujeito possa encontrar a história e o saber que o outro indivíduo tem guardado. Formas diferentes de interpretar o mundo muitas vezes não são permitidas de serem comunicadas e nem expressadas. A arrogância e a prepotência impeliram uma série de fatos históricos catastróficos marcando duramente a história da Humanidade.

Os projetos que apresentei na tese todos eles estavam embebidos de esperança e fé. Em nenhum instante as atividades que desenvolvemos nos processos de criação laboratorial deixaram de acreditar no sentido comum. O encontro com as culturas indígenas do México me apresentou um universo que constrói seu saber tendo em conta uma apreensão de mundo permeada pelo sentimento de comoção. Sentir e pensar, como foi exaltado na segunda parte da tese, são verbos e posturas de vida que compõem o saber mesoamericano.

143

A Universidad Veracruzana Intercultural para mim foi uma grande escola aonde são desenvolvidos programas disciplinares que promovem o diálogo entre culturas, entre saberes. O exercício de reconhecer o labor das parteiras nos postos de saúde público e do saber dos curandeiros é imprescindível para atenuar os níveis de mortalidade. Não é porque novas formas de cuidado são desenvolvidas que as antigas devem ser postas de lado. De algum modo a base que fundamentou as culturas tradicionais americanas, e podemos dizer de modo planetário, foram os estudos práticos da vida cotidiana. Mas parece que a distinção das roupas, das comidas, das línguas não permite averiguar que processos de descoberta sempre foram desenvolvidos partindo de um ponto quase sempre comum: a manutenção da saúde, da paz e da alegria.

Figura 31: Imagens dos rituais na região da Huasteca-Veracruz/México (Foto: Rafa Nava Vita)
Figura 32: Imagens dos rituais na região da Huasteca-Veracruz/México (Foto: Rafa Nava Vita)

No Projeto “De Fora Adentro”, a experiência de ver o mundo de cima, fazendo com que a cidade se tornasse pequenina e os visitantes gigantes proporcionou uma experiência na qual as pessoas puderam ver-se dentro de um todo interligado. Ver a mancha escura sendo lançada ao rio declara a poluição das águas e a falta de consciência ambiental. Essa falta de cuidado com os bens naturais expressa que o modo de vida contemporâneo não se preparou para o futuro, nem sequer para cuidar das sementes dos filhos que um dia cuidarão desta Terra. Essa é uma grande amostra da falta de um projeto social, educativo, ambiental na Terra. Nosso planeta por anos está entregue às vaidades dos governantes.

Pelo projeto “Casa Mãe Terra” promovemos o belo encontro entre um taipeiro tradicional com um grande pensador contemporâneo ocidental. Pelo processo criativo artistas, antropólogos, ecólogos, fisioterapeutas, arquitetos se encontraram para criar um templo conjuntamente. A arte reuniu mãos, digitais, histórias e memórias. Atualmente a “Casa Mãe Terra” é utilizada por diversos coletivos que realizam suas práticas espirituais distintas. Ela pode servir para um coletivo de portadores de Alzheimer, que entram um por um para rezarem um Pai Nosso e fazer uma oração; ela pode ser utilizada por obstetras, parteiras e doulas, para cuidarem de suas gestantes e para lutarem politicamente a favor do parto humanizado. Ela pode ser utilizada para se realizar práticas de xamanismo: “É preciso mostrar que a humanidade vive agora uma comunidade de destino comum” (MORIN, 2000) . A Terra Pátria, como diz Morin, agora é um pequeno planeta que precisa ser cuidado por uma humanidade consciente de sua unidade diversificada.

Figura 33: Imagens da inauguraçã da Escultura públicas Casa Mãe Terra no Parque das Dunas. Nas fotografias aparecem autor da obra, taipeiro Duda, Edgar Morin, Professora Maria da Conceição de Almeida/Grecom, arquiteto Marcelo Tinoco/UFRN).
Figura 34: Imagens da inauguraçã da Escultura públicas Casa Mãe Terra no Parque das Dunas. Nas fotografias aparecem autor da obra, taipeiro Duda, Edgar Morin, Professora Maria da Conceição de Almeida/Grecom, arquiteto Marcelo Tinoco/UFRN).
144

Sétimo saber: discutir e exercitar a ética

Finalmente, Edgar Morin (2000) ergue a importante discussão sobre o exercício da ética como um saber extremamente necessário para a construção da educação do futuro. Todos os outros saberes então expostos, por mais que sejam desenvolvidos e que se tornem conscientes nos indivíduos, não realizarão as mudanças necessárias no espírito humano caso os sujeitos não se deem conta da importância que cada um tem no processo de cuidado e participação social. A consciência da fragilidade que atualmente se tem sobre o Planeta Terra, assim como a consciência sobre as causas dos tantos desastres sociais vividos nos últimos séculos oriundos de um processo civilizatório equivocado, impõem ao espírito humano uma reformulação do próprio pensamento sobre as consequências de nossos propósitos, intenções, ações e interações com o mundo físico e com os indivíduos que compartilham da mesma Terra onde habitamos: “É importante orientar e guiar essa tomada de consciência social que leva à cidadania para que o indivíduo exerça sua responsabilidade” (MORIN, 2000)

Enquanto pesquisador, artista, pedagogo creio ter desenvolvido algumas reflexões, criações e metodologias que permitiram despertar no público que interage com as obras criadas ou com as atividades pedagógicas oferecidas, deste sentimento de cuidado, pertencimento, apropriação e responsabilidade. De alguma forma em todos os projetos desenvolvidos e apresentados na tese foi de minha preocupação gerar nas pessoas reflexões sobre suas formas de habitar o mundo.

As pesquisas realizadas para a construção da escultura Casa Mãe Terra objetivaram desenvolver uma tecnologia menos degradante para a Natureza. Reintroduzir uma técnica antiga teve o propósito de empreender uma construção consciente dos materiais que são necessários para erguer uma casa. Desta forma conseguimos minimizar os impactos na natureza que a construção civil impõe de forma irresponsável.

As atividades junto a Universidad Veracruzana Intercultural estão imbuídas de propósitos que impulsionam a participação social para a transformação social. A formação que é dada aos alunos desta Universidade, como Gestores Interculturais, tem o objetivo de preparar os jovens indígenas e mestiços das áreas rurais para enfrentar os problemas sócio ambientais que estas comunidades vivem. Mapear temas como medicina tradicional, curandeirismo, violência familiar, arte e ritualidade, proporciona no jovem um espírito de cuidado com a realidade dos membros de sua comunidade. Ao conhecer as causas que geram a imigração dos jovens de sexo masculino para os Estados Unidos, os alunos da Universidad Veracruzana Intercultural pensam sobre quais outras oportunidades poderiam ser oferecidas para estes jovens para que não abandonem suas casas e lugares.

Também pelo Projeto “De Fora Adentro”, tanto pelas produções artísticas como pelas atividades pedagógicas nos preocupamos em proporcionar reflexões sobre a responsabilidade e a participação individual e coletiva sobre causas sociais e ambientais. Finalmente o maior propósito sempre foi o de criar objetos, instalações que despertassem percepções e sensibilidades sobre a importância em conhecer a fragilidade da Terra e sobre a responsabilidade social. Morin deixa claro que esse senso de responsabilidade deva ser desenvolvido por todos os sujeitos habitantes da Terra, mas chama a atenção para uma postura ainda mais consciente que deve ser esperada dos governantes e por parte das grandes corporações mundiais.

145

Considerações finais

Enfim, este artigo expõe algumas das discussões que compõem uma tese de doutorado que buscou apresentar projetos e estudos realizados nos últimos treze anos que demonstram a importância em gerar pesquisas científicas transdisciplinares, nas quais pesquisadores oriundos de distintos departamentos possam reunir suas dimensões específicas na construção de uma visão mais holística. As reflexões geradas objetivam finalmente ampliar as discussões tão importantes acerca da formulação de uma pedagogia fundamentada por conhecimentos interculturais, aonde os saberes acadêmicos dialoguem mais abertamente com os saberes tradicionais, aonde a ciência dialogue com a linguagem artística e que esta linguagem ajude a viabilizar e impulsionar práticas de popularização da ciência mediadas pela criação de exposições gestadas sob forma de laboratórios transdisciplinares colaborativos e criativos.

Se tivéssemos que atribuir um nome à pedagogia que desenvolvemos, me apropriaria das ideias da etnomatémática Teresa Vergani, que também esteve vivendo e criando com as culturas Mesoamericanas, e denominaria nossas experiências como sendo oriundas de uma Pedagogia da Serenidade. Uma pedagogia entregue a uma investigação cautelosa, cuidadosa, amorosa e respeitosa com o mundo em que vivemos.

Se tivéssemos que dar um nome a nossa escola, então me apropriaria das ideias de Gaston Bachelard, e nomearia nossa escola de Escola de Ingenuidades, onde sempre teríamos como método de investigação a curiosidade, a persistência, a doçura e a fé que as crianças tem quando repousadas se deleitam e se maravilham ao desfrutar da experiência cósmica.

Em nossa Escola, pensar e sentir voltariam a estar reunidos como um dia o foi na Mesoamérica e o sentido de comoção proporcionaria uma adesão consciente e poética no mundo. Nela seriam impulsionadas práticas de interpretação de si, de nós mesmos, para que pudéssemos conectar a história do mundo com as nossas próprias histórias. Seguiríamos desenvolvendo práticas educativas criativas que se apoiam nas tecnologias para proporcionar o exercício da cidadania. Práticas estas que incentivassem uma adesão participativa no sujeito que se sente pertencendo ao mundo que habita; práticas e teorias que impulsionassem uma leitura do mundo e uma construção de saberes que fossem regidos por uma percepção multidimensional que entrelaça sujeito, sociedade e espécie.

Referência bibliográfica

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Joaquim José Moura Ramos. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 10. ed. São Paulo / Brasília: Cortez / UNESCO, 2005.

PANELLA, Maurício. Processos de transmutação do sujeito criador e poéticas cartográficas sobre o habitar: Transposições entre arte, ciência, tecnologia e os saberes tradicionais para a construção de uma transpedagogia intersubjetiva, intercultural e multidimensional. Granada: Universidad de Granada, 2016. Tese de Doutorado [http://hdl.handle.net/10481/41361]

PROCESSOS DE TRANSMUTAÇÃO DO SUJEITO CRIADOR E POÉTICAS CARTOGRÁFICAS SOBRE O HABITAR: transposições entre arte, ciência, tecnologia e os saberes tradicionais para a construção de uma transpedagogia intersubjetiva, intercultural e multidimensional. Tese de doutorado. Acesse <http://hdl.handle.net/10481/41361]

Projeto De Fora Adentro: O projeto De Fora Adentro foi lançado tendo como produto inicial o mapa gigante da cidade do Natal, impresso em lona vinílica e envernizado com tamanho de 13 m.X 26 m. Esta instalação convidava o público a caminhar pela cidade do Natal.

Cidade Vestida: espetácilo de dança contemporânea realizado em parceria com a dançarina Ana Claudia Albano da Companhia Nammu. O espetáculo ganho o prêmio Renda de circulação pelo edital de dança contemporânea Funarte-Petrobrás Cultural.

Proyecto de Difusión del Patrimonio en Video y TV: No ano de 2007 fui convidado pela Universidad Veracruzana Intercutural/ México a coordenar um projeto de difusão do patrimônio em vídeo e tv juntos aos jovens universitários indígenas e mestiços que se graduavam no curso de Licenciatura em Gestão Cultural para el desarrollo. Durante o ano de 2007 e 2008 o projeto foi desenvolvido junto a jovens de 13 etnias nas quatro regiões aonde a UVI atua no estado de Veracruz.

MORIN, Edgar. Os setes saberes necessários à educação do futuro. Cortez Editora, 2000. P.76

MORIN, Edgar. Os setes saberes necessários à educação do futuro. Cortez Editora, 2000.

MORIN, Edgar. Os setes saberes necessários à educação do futuro. Cortez Editora, 2000.