Licenciatura em Artes visuais Percurso 1
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Os significados da educação, modalidades de prática educativa e a organização do sistema educacional

Autor

Dr. José Carlos Libâneo Graduado Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1966), mestrado em Filosofia da Educação (1984) e doutorado em Filosofia e História da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1990). Pós-doutorado pela Universidade de Valladolid, Espanha (2005). Professor Titular aposentado da Universidade Federal de Goiás. Atualmente é Professor Titular da Universidade Católica de Goiás, atuando no Programa de Pós-Graduação em Educação, na Linha de Pesquisa Teorias da Educação e Processos Pedagógicos. Coordena o Grupo de Pesquisa do CNPq: Teorias e Processos educacionais. É membro do Conselho Editorial das seguintes revistas: Olhar de Professor (UEPG), Revista de Estudos Universitárias (Sorocaba), Educativa (UCG), Espaço Pedagógico (UPF), Interface- Comunicação, Saúde e Educação (Unesp Botucatu), parecerista da Revista Brasilera de Educação e Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Membro do Conselho Editorial da Editora Unijui. Pesquisa e escreve sobre os seguintes temas: teoria da educação, didática, formação de professores, ensino e aprendizagem, organização e gestão da escola. Atualmente desenvolve pesquisas dentro da teoria histórico-cultural, com ênfase na aprendizagem, ensino e organização da escola. É membro do GT Didática da ANPEd-Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação.

Saiba mais

O texto pretende explicitar os significados do termo educação recorrendo à sua origem etimológica, a algumas definições clássicas e à crítica dessas definições com base na dialética materialista. Propõe uma definição da educação nessa perspectiva para, em seguida, identificá-la como objetivo de estudo da ciência pedagógica. Aborda as modalidades de educação (informal, não-formal, formal) seus sentidos de instituição, produto e processo e as formas de integração e articulação dessas modalidades, levantando ideias para a setorização do sistema educacional.

Os que atuam mais diretamente na prática educativa escolar professores, administradores escolares, diretores de escolas, supervisores, psicólogos dizem-se educadores mas nem sempre os sentidos que dão ao termo educação aplicam-se às mesmas realidades. Por exemplo, educadores ocupados em planejar, organizar, supervisionar um sistema estadual de ensino terão menor interesse em temas como aprendizagem da leitura; um professor do ensino de 1º grau raramente deter-se-á em aprofundar estudos da política e gestão do sistema escolar. Para uns, importa mais a educação como instituição social, para outros, a educação como processo de escolarização. Entre os que se dedicam à formação de professores de nível superior ou de 2° grau, é comum tomarem apenas o aspecto da totalidade do fenômeno educativo decorrente da área de estudo em que são especialistas. Ao professor de Sociologia da Educação, por exemplo, assuntos como didática das matérias, processos internos de aquisição de conhecimentos, certamente são tomados como secundários. Um psicólogo da educação, quando investiga ou atua no campo educacional, aplica aí conceitos e métodos da Psicologia e os resultados que obtêm são de ordem psicológica. Além disso, há que se considerar ideias, significados, representações e práticas do senso comum, em que os significados de educação são mesclados de elementos ideológicos, legais, culturais, religiosos, dominantes no ambiente sócio-cultural.

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É inevitável, assim, que ocorram entendimentos parcializados devido ao viés das várias áreas de conhecimento que se ocupam do fenômeno educativo, das diversas instituições que lidam com questões educacionais ou das experiências em instituições específicas; os problemas surgem quando pretendem generalizar conclusões de estudos ou opiniões para todas as instâncias da prática educativa.

As consequências dessa problemática são as visões parcializadas, reducionistas ou de senso comum bem como as notórias dificuldades de precisão na definição de certos conceitos como pedagogia, instrução, ensino, sistema educacional, sistema de ensino. É sabido que a própria Pedagogia não dispõe de uma estruturação clara e formal de conceitos, mas isto não invalida a busca de integração entre várias especializações, objetivando um mínimo de precisão conceitual. Além disso, precisamente por serem muitas as portas de entrada para o estudo da educação, faz-se necessário o esforço de clarificar o âmbito do educativo, isto é, o que distingue o enfoque educativo da realidade de outros enfoques. Essa tarefa pertence à Pedagogia, na condição de ciência da e para a educação; ela sintetiza as contribuições das demais ciências da educação, dando unidade à multiplicidade dos enfoques analíticos do fenômeno educativo. Com isso, reconhece-se que os processos educativos ocorrentes na sociedade são complexos e multifacetados, não podendo ser investigados à luz de apenas uma perspectiva e, muito menos, reduzidas ao âmbito escolar. Ao mesmo tempo, é em razão da multiplicidade das dimensões do processo educativo que se torna necessário o enfoque propriamente educativo da realidade educacional e educativa, mediante uma reflexão problematizadora que integre os enfoques parciais providos pelas demais ciências sociais. Talvez seja o núcleo do debate sobre a problemática conceitual da educação e da investigação propriamente pedagógica.

O tema é instigante e complexo, mas precisa ser encarado, ainda que para estimular a divergência e o debate, que é a forma do conhecimento avançar. O objetivo deste artigo é contribuir para o entendimento mais amplo dos significados e extensões do termo educação. A par disso, o texto poderá servir de subsídio aos alunos que se iniciam no estudo dos fundamentos da educação.

O conceito de educação

No linguajar corrente encontramos diversas expressões para designar o acontecer educativo: processo educativo, prática educativa, atividade educacional. Falamos de educação nacional, educação ambiental, educação rural, educação sexual, educação para o trânsito, educação escolar, etc. Será possível chegarmos a um conceito que expresse características básicas, distintivas, do fenômeno educativo? Mesmo considerando o acontecer educativo como uma realidade multifacetada, e algo que permeia toda a vida social, será possível delimitar o campo de investigação do educativo de modo a distinguir modalidades, setores, tipo de educação?

Talvez seja útil partimos do sentido etimológico da educação. Alguns autores que se ocupam em esclarecer o conceito apontam a origem latina de dois termos: educare (alimentar, cuidar, criar, referido tanto às plantas, aos animais, como às crianças); educere (tirar para fora de, conduzir para, modificar um estado). Mialaret faz uma interessante observação sobre o significado destes dois termos: “Alimentar e educar. Não serão essas duas tendências seculares e frequentemente em conflito de uma educação ora preocupada antes de tudo em alimentar a criança de conhecimento, ora em educá-la para tirar dela todas as possibilidades?” (1976:11)

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Planchard (1975:26) assinala que educar, em seu sentido etimológico, é conduzir de um estado para outro estado, é agir de maneira sistemática sobre o ser humano tendo em vista prepará-lo para a vida num determinado meio. O termo “educatio” (educação) parece sintetizar aqueles dois outros: criação, tratamento, cuidados que se aplicam aos educandos visando a adaptar seu comportamento a expectativas e exigências de um determinado meio social.

Essa noção parece estar presente no linguajar comum. Quando as pessoas dizem: “os pais educam os filhos”, “fulano não tem educação”, “a escola educa para a vida”, “a educação é a mola do progresso”, tem-se aí o sentido mais corrente de educação: uma série de medidas e atos visando à adaptação do comportamento dos indivíduos e grupos a determinadas exigências do contexto social. Esse contexto pode ser a família, a escola, a igreja, a fábrica e outros segmentos sociais. A ação educadora seria, pois, a transmissão às crianças e jovens de princípios, valores, costumes, ideias, normas sociais, regras e vida, às quais precisam ser adaptados, ajustados. Educa-se para que os indivíduos repitam os comportamentos sociais esperados pelos adultos, de modo que se formem à imagem e semelhança da sociedade em que vivem e crescem.

Nesse entendimento corrente, há sem dúvida, um posicionamento que pode ser considerado conservador. A educação é vista como algo que se repete, que se reproduz, algo sempre idêntico e imutável. Por mais que se identifique aí uma função comunitária no sentido de inserir os indivíduos num sistema social, predomina uma ideia de adaptação passiva a uma realidade cristalizada, isto é, a educação seria sempre a mesma para uma sociedade que é sempre a mesma. Para apreendermos uma noção mais ampliada da educação, não convém simplesmente recusar o entendimento corrente que vimos mencionando. A educação tem, de fato, uma adaptadora. Há vínculos reais entre o ser humano que se educa e o meio natural e social, há um certo grau de adaptação às exigências desse meio. A educação é, também, uma prática ligada à produção e reprodução da vida social, condição para que os indivíduos se formem para a continuidade da vida social. Nesse sentido, é inevitável que as gerações adultas cuidem de transmitir às gerações mais novas os conhecimentos, experiências, modos de ação que a humanidade foi acumulando em decorrência das relações incessantes entre o homem e o meio natural e social. Trata-se, assim, de reconhecer no conceito de educação difundido no linguajar corrente dessa ideia batizadora: o acontecer educativo corresponde à ação e ao resultado de um processo de formação dos sujeitos ao longo das idades para se tornarem adultos, pelo que adquirem capacidades e qualidades humanas para o enfrentamento de exigências postas por determinado contexto social. É em torno dessa ideia balizadora que vão constituindo as teorias da educação, nas quais filósofos e educadores explicitam a natureza, os fins, as modalidades e métodos da educação.

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Algumas definições clássicas de educação

As definições de educação são tão variadas quanto são as correntes e autores que se dedicaram ao seu estudo. Mencionaremos sobre a natureza da ação de educar e a finalidade ou ideal que postulam. Ver-se-á que há quase uma unanimidade entre os autores em considerar a educação como um processo de desenvolvimento: o ser humano se desenvolve e se transforma continuamente e a educação pode atuar na configuração da personalidade a partir de determinadas condições internas do indivíduo. Entretanto, as definições se diferenciam, pelo menos, em dois aspectos: 1) se esse processo depende de disposições internas ou da influência do ambiente circundante ou da ação recíproca entre ambos; 2) qual a finalidade ou ideal que se busca. Vejamos algumas dessas definições, sem pretender esgotar as concepções pedagógicas.

As concepções naturalistas, também chamadas inatistas, dão primazia aos fatores biológicos do desenvolvimento. A influência externa vinda de fatores sociais, culturais, agiria apenas como reguladora do ritmo e da manifestação de processos internos inatos. A educação e o ensino devem adaptar-se à natureza biológica e psicológica da criança e às tendências de seu desenvolvimento que já estariam basicamente prontas deste o nascimento. A finalidade da educação seria trazer à tona, “tirar para fora”, o que já existe na natureza do individuo. As frases de Pestalozzi expressam bem essa ideia:

“A ideia da educação elementar nada mais é que o propósito de conformar-se com a natureza para desenvolver e cultivar as disposições e as faculdades da raça humana (...). A educação verdadeira, a educação segunda a natureza, conduz por sua essência a aspirar à perfeição, a tender à realização das faculdades humanas (...). Cada uma dessas faculdades se desenvolve segundo leis eternas imutáveis; e seu desdobramento não é conforme à natureza senão à medida que concorda com as leis eternas de nossa própria natureza”. (in CHATEAU, 1978: 217)

As concepções pragmáticas concebem a educação como um processo imanente ao desenvolvimento humano cujo resultado é a adaptação do indivíduo ao meio social. Por isso, educar-se é desenvolver-se, é autoatividade provocada pelos interesses e necessidades do organismo, suscitados pelo ambiente físico e social. É pela experiência, nas interações entre organismo e meio, que o individuo desenvolve suas funções cognitivas. Essa concepção recusa toda orientação externa ao processo educativo, já que a finalidade da educação se confunde com o processo de desenvolvimento. Dewey diz que “a criança é o ponto de partida, o centro e o fim; seu desenvolvimento e seu crescimento, o ideal” (Dewey, 1959: 45). A seguir são apresentadadas duas definições: “A educação é a organização dos recursos biológicos do indivíduo, de todas as capacidades de comportamento que o fazem adaptável ao meio físico e social” .(W. James in LUZURIANGA, 1951: 40)

“A educação não é a preparação para a vida, é a própria vida (...). A educação é uma constante reconstrução ou reorganização da nossa experiência, que opera uma transformação direta da qualidade da experiência , isto é,esclarece e aumenta o sentido da experiência e, ao menos tempo, nossa aptidão para dirigirmos o curso das experiências subsequentes”(Dewey, 1959: 83).

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As concepções espiritualistas também concebem a educação como um processo interior mediante o qual cada pessoa vai se aperfeiçoando, mas é necessária a adesão a verdades ensinadas de fora, que dizem como o homem deve ser. Para a pedagogia católica, a educação busca o fim último da vida que é regenerar o homem corrompido pelo pecado original, preparando-o para a vida eterna. Para isso, cabe à educação atualizar disposições existentes potencialmente no aluno, cultivando suas faculdades mentais tendo em vista atingir o ideal de perfeição, cujo modelo é Cristo.

“Educação é um processo de crescimento e desenvolvimento pelo qual o indivíduo assimila um corpo de conhecimentos, demarca seus ideais e aprimora sua habilidade no trato dos conhecimentos para a consecução de grandes ideais”. (CUNNINGHAM, 1975: 9)

“O verdadeiro cristão, fruto da educação cristã, é o homem sobrenatural que pensa, julga, age com constância e perseverança, seguindo a reta razão iluminada pela luz sobrenatural dos exemplos e da doutrina de Cristo”. (Pio XI in PLANCHARD, 1975: 26)

Para as concepções culturalistas, a educação é uma atividade cultural dirigida à formação dos indivíduos, mediante a transmissão de bens culturais que se transformam em forças espirituais internas no educando. O processo educativo realiza o encontro de duas realidades: a liberdade individual, cuja fonte é a vida interior, e as condições externas da vida real, o mundo objetivo da cultura. Apropriando-se dos valores culturais, o indivíduo forma sua vida interior, sua personalidade e, com isso pode criar mais cultura.

A educação é a atividade planejada pela qual os adultos formam a vida anímica dos seres em desenvolvimento (...) é uma influência intencional sobre a geração em desenvolvimento, que pretende dar aos indivíduos que se desenvolvem, determinada forma de vida, determinada ordem às forças espirituais”. (W.Dilthey in LUZURIAGA, 1957: 32)

“A Educação é o modo de ser subjetivo da cultura, a forma interna e espiritual da alma, que pode acolher em si com suas próprias forças tudo o que lhe chega de fora, e estruturar todas as manifestações e ações dessa vida unitária”. (H. Nohl in LUZURIAGA, 1951: 32)

As concepções ambientalistas são as que jogam no ambiente externo toda a força de atuação sobre o indivíduo para configurar sua conduta às exigências da sociedade. Segundo Durkheim, é a sociedade que propicia valores, ideias, regras, às quais o espírito do educando deve submeter-se. Diz mesmo que a educação é uma imposição do educando de maneiras de ver, de sentir e agir em consonância com os valores sociais. É conhecida a definição desse autor:

“A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontrem ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança particularmente de destine”. (Durkheim, 1967: 41)

Outra corrente ambientalista é a que vem do behaviorismo, pelo qual o homem é um ser moldável e por isso suas características se desenvolvem mediante a ação do ambiente externo. A educação seria a organização de situações estimuladoras pelas quais se controla o comportamento das pessoas, sem considerar seu raciocínio, seus desejos e fantasias, seus sentimentos, e as formas como são apropriados os conhecimentos. (Davis e Oliveira, 1990: 33)

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Se percorrermos outras teorias, encontraremos muitas outras definições de educação. A amostra que demos sugere os vários entendimentos da ação educativa e de suas finalidades. Algumas colocam o ideal educativo fora do indivíduo, outras identificam educação com o desenvolvimento individual. Umas se atêm mais à atividade e às necessidades internas do individuo, outras atribuem ao ambiente externo a determinação do desenvolvimento. Algumas, ainda, buscam resolver o possível antagonismo entre o desenvolvimento – fator interno e espontâneo — e a adaptação — fator externo e imposto, como o fazem as concepções interacionistas. Como escreve SUCHODOLSKI (1984: 113), o pensamento pedagógico de nossa época se debate com um dilema: “unir educação e vida de modo que não seja necessário um ideal ou definir um ideal tal que a vida real não seja necessária”. Propõe como saída para o dilema uma solução de compromisso entre um caminho e outro, unindo o princípio da ligação entre educação e vida ao princípio de uma educação subordinada a um ideal ou, ainda, desfazendo a polarização entre a ideia de homem tal como deve ser e a ideia de homem tal como é.

Seja como for, as definições que apresentamos se movem em torno de uma visão individualista e liberal de educação, passando ao largo dos vínculos entre o processo educativo e as condições históricas e sociais em que se baseia a organização da sociedade. A superação da antinomia entre vida e ideal não pode se dar no âmbito apenas da individualidade, pois tanto a esfera do individual quanto a esfera do ambiente acham-se vinculados a condições concretas de vida material e social. O processo educativo, por consequência, é um fenômeno social, enraizado nas contradições, nas lutas sociais, de modo que é nos embates da práxis social que vai se configurando o ideal de formação humana.

A crítica política e pedagógica do conceito de educação

A dialética materialista, ao conceber a educação como produto do desenvolvimento social e determinada pela forma de relações sociais de uma dada sociedade, põe-se como crítica radical à educação individualista burguesa.

O vínculo da prática educativa com a prática social global faz vir à tona o fato de ela subordinar-se a interesses engendrados na dinâmica de relações entre grupos e classes sociais. Nessas condições, a educação tende não só a ser representativa dos interesses dominantes (consolidados pela ação do Estado) como também a ser transmissora da ideologia que responda a esses interesses.

Como efeito, a educação, para além de sua configuração como processo de desenvolvimento individual ou de mera relação interpessoal, insere-se no conjunto das relações sociais, econômicas, políticas, culturais que caracterizam uma sociedade. Se atentarmos para o fato de que, na sociedade presente, as relações sociais são marcadas por antagonismo entre os interesses de classes sociais e grupos sociais que se configuram em relações de poder, não será difícil perceber que as funções da educação somente podem ser explicadas partindo da análise objetiva das relações sociais vigentes, das formas econômicas, dos interesses sociais em jogo. Com base nesse entendimento, a prática educativa é sempre a expressão de uma determinada forma de organização das relações sociais na sociedade. Se, a par disso, vermos cada forma de organização social como resultado das ações humanas, portanto passível de ser modificada, também a educação é um acontecimento sempre em transformação. Ou seja, os objetivos e conteúdos da educação não são sempre idênticos e imutáveis, antes, variam ao longo da história e são determinados conforme o desdobramento concreto das relações sociais, das formas econômicas da produção, das lutas sociais.

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A explicitação da dependência da educação às formas sociais, econômicas, políticas de uma sociedade levam a contestar a concepção corrente de ação educadora, de formação do adulto nos marcos estreitos da família, da escola, da igreja. Há processos educativos mais amplos que se sobrepõem às instituições, aos indivíduos e aos grupos que, tal como outras instâncias da vida social, política, cultural, encontram-se vinculados ao modo de produção da vida material. Marx e Engels escrevem a esse respeito o seguinte:

“As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material, dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a elas sejam submetidas, ao mesmo tempo e em geral, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual”. (1984: 72)

Entender, pois, a educação como mero ajustamento a expectativas e exigências da sociedade existente significa desconhecer a constituição histórico-social do conceito de educação. A educação nunca pode ser a mesma em todas as épocas e lugares devido a seu caráter socialmente determinado, ou seja, as normas sociais, os valores, os modelos de vida, de trabalho e de relações entre as pessoas correspondem a modelos socialmente dominantes encarnados pelas classes que detêm o poder econômico e político. Como se manifestam esses modelos?

Em certo sentido, pode-se dizer que a prática social se manifesta, preponderantemente, na política. Como escreve CHARLOT (1979: 13), “a política constitui uma certa forma de totalização do conjunto das experiências vividas numa determinada sociedade”. Tais experiências ocorrem no âmbito das instituições sociais, políticas, econômicas, culturais, geridas pelo Estado enquanto estrutura jurídico-política. Entre essas instituições, destacam-se aquelas encarregadas da instância ideológica, isto é, da produção, reprodução e difusão de princípios e valores que asseguram os interesses do sistema político e a estabilidade social.

“É no nível das relações entre classes e grupos sociais (antagônicos) que é elaborada a ideologia (...). Atendo-nos tão somente à educação, o Estado a implementa mediante sua política educacional. É no âmago dessa política educacional feita de ideias, planos, legislação, medidas administrativas e processos efetivos de ação prática, que ganha forma a ideologia do Estado” (SEVERINO, 1986: 50).

Esse mesmo autor afirma, em seguida, que todo discurso pedagógico expresso na teoria, na legislação e na prática educacional é necessariamente um discurso auto-reprodutivo e reprodutor das relações sociais que estruturam determinada sociedade. Mas esclarece que a educação não tem sentido unívoco enquanto pura instância de reprodução, pois os processos que desencadeia geram e desenvolvem também forças contraditórias, que comprometem o fatalismo da reprodução quer ideológica quer social, atuando na direção da transformação da realidade social. Pode operar, pois, uma mediação na ruptura das práticas reprodutivas pela intervenção da práxis humana que pode criar, recriar, transformar a realidade social. Pode prover aos indivíduos a apropriação de saberes pelos quais podem compreender as relações reais de poder, atuando na formação política das classes dominadas, tanto a nível da gestação de sua consciência de classe quanto na âmbitol de sua instrumentação para a práxis política mais adequada. (1986: 50)

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O ponto de vista crítico sobre a educação

Podemos buscar uma síntese do nosso entendimento de educação. Em sentido amplo, compreende o conjunto dos processos formativos que ocorrem no meio social, sejam eles intencionais ou não-intencionais, sistematizados ou não, institucionalizados ou não. Em sentido estrito, refere-se especificamente às formas intencionais que envolvem a educação escolar e extra-escolar. Retomaremos esse tema mais adiante. A prática educativa intencional compreende, assim, todo fato, influência, ação, processo, que intervém na configuração da existência humana, individual ou grupal. Integra o conjunto dos processos sociais, pelo que se constitui como uma das influências do meio social que compõe o processo de socialização. Quando falamos em configuração da existência humana, queremos dizer que a educação visa ao desenvolvimento e a formação dos indivíduos em suas relações mútuas, por meio de um conjunto de conhecimentos e habilidades que orienta a pessoa na sua atividade prática nas várias instâncias da vida social. Em suas relações mútuas quer dizer que o processo educativo ocorre em meio a relações sociais reais, o que é a mesma coisa que dizer que objetivos e conteúdos da educação são permeados pelas relações de poder existentes numa determinada sociedade. Sendo assim, a educação é uma atividade intencionalmente impulsionada, conforme fins que se estabelecem dentro do quadro de interesses e práticas das classes sociais.

Podemos, agora, tentar uma definição. A educação, enquanto atividade intencionalizada, é uma prática social cunhada como influência do meio social sobre o desenvolvimento dos indivíduos na sua relação ativa com o meio natural e social, tendo em vista, precisamente, potencializar essa atividade humana para torná-la mais rica, mais produtiva, mais eficaz em face das tarefas da práxis social postas num dado sistema de relações sociais. O modo de propiciar esse desenvolvimento se produz na interação entre os homens onde a atividade humana condensada sob a forma de conhecimento, valores, habilidades, técnicas, é comunicada e assimilada.

Encontramos aí o caráter de mediação da educação na atividade humana prática, operando a ligação teoria-prática. Mediante conhecimentos, habilidades, modos de ação, são providas aquelas qualidades e capacidades humanas necessárias à atividade prática transformadora dos sujeitos em frente às realidades física e social. Pode-se dizer, em outras palavras, que a prática educativa intencional concentra a experiência generalizada da humanidade no que se refere a saberes, experiências, modos de atuação, acumuladas do decurso da atividade sócio-histórica de muitas gerações, para comunicá-las às novas gerações, como patamar para mais produção de saberes. Aqui está a gênese dos processos educativos intencionais que ocorrem na família, na escola, nos grupos sociais, nos movimentos sociais.

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Educação, objeto de estudo da pedagogia

Se, como vimos, a prática educativa é um fenômeno constante e universal inerente à vida social, se é um âmbito da realidade possível de ser investigado, se é uma atividade humana real, ela se constitui como objeto de conhecimento, pertencendo essa tarefa à Pedagogia que é, por isso, teoria e prática da educação. A Pedagogia investiga os fatores reais e concretos que concorrem para a formação humana, no seu desenvolvimento histórico, para daí extrair objetivos sócio-políticos e formas de intervenção organizativa e metodológica em torno dos processos que correspondem à ação educativa. Vimos, também, que a educação é uma realidade que se modifica enquanto fenômeno social e histórico, face à dinâmica das relações sociais, econômicas, políticas culturais. Por consequência, o movimento, a transformação da realidade educativa leva também a mutações na Pedagogia, cabendo-lhe orientar a prática educativa conforme exigências concretas postas pelo processo de conquista da humanização em cada momento do processo histórico-social. Com isso, em frente às mutações da educação, ela vai propondo novos objetivos e conteúdos da educação. Como diz SUCHODOLSKI (1976: 19), “a Pedagogia, em certo sentido, cria seu próprio objeto analítico, porquanto interfere na atividade educativa e forma seu conteúdo” e, por isso pode ser ”ciência sobre a atividade transformadora da atividade educativa”.

Certamente a Pedagogia não é a única área científica que tem a educação como objeto de estudo. Outras ciências como a Sociologia, a Psicologia, a Economia, a Linguística ocupam–se de problemas educativos. O fato de a educação ser analisada sob vários enfoques - exigência posta pela própria natureza do fenômeno educativo - tem levado alguns teóricos a postularem a existência de ciências da educação, que substituiriam a Pedagogia. Entretanto, cada uma dessas ciências aborda o fenômeno educativo sob a perspectiva de seus próprios conceitos e métodos de investigação. Entendemos que a Pedagogia é uma das ciências da educação, mas se distingue delas por estudar o fenômeno educativo na sua globalidade. É verdade que ela recorre a conceitos e métodos de outras ciências, enquanto busca instituir seus próprios. Todavia, é um campo de estudos com identidade e problemáticas próprias. Cabe-lhe integrar os enfoques parciais dessas diversas ciências, em função de uma aproximação global e intencionalmente dirigida aos problemas educativos. (VISALBERGHI, 1983: 265)

Educações e Pedagogias

Nossas considerações anteriores mostraram a educação como fenômeno social inerente à constituição do homem e da sociedade, integrante, portanto, da vida social, econômica, política, cultural. Trata-se, pois, de um processo global entranhado na prática social, compreendendo processos formativos que ocorrem numa variedade de instituições e atividades (sociais, políticas, econômicas, religiosas, culturais, legais, familiares, escolares), nas quais os indivíduos estão envolvidos de modo necessários e inevitável, pelo simples fato de existirem socialmente.

Falamos, pois, de práticas educativas, educações, que ocorrem em diferentes instâncias (familiar, social, profissional, escolar, meios de comunicação social, etc.), mediante distintas formas (intencional/não-intencional, formal/não-formal, escolar/extra-escolar, pública/privada. Por consequência, a toda prática educativa intencional corresponde uma pedagogia, pelo que falamos também em pedagogias: familiar, profissional, sindical, etc.

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Educação escolar, Pedagogia escolar

A educação escolar representa uma manifestação peculiar de prática educativa, compartilhando de outras práticas confluentes. Constitui-se, assim, a pedagogia escolar, destinada a investigar fatos, processos, estruturas, contextos, problemas, referentes à educação escolar, isto é, à instrução e ao ensino.

A educação escolar que, como veremos adiante, é uma instância de educação formal, não pode eximir-se da interação com outras modalidades de educação (informal e não-formal). Considere-se, por exemplo, a ação dos meios de comunicação social que exerce forte concorrência com a educação escolar. Ao lado, portanto, de seu caráter específico de dedicar-se à instrução e ao ensino, para isso convergindo sua organização interna, sua diferenciação por graus, seus procedimentos específicos, há que se ver que a educação escolar assume atributos que a aproximam de outras instituições e atividades fora de seu marco próprio.

Essa constatação põe a exigência de que os objetivos, os conteúdos, os métodos se abram para relações mais amplas entre o indivíduo e o meio humano, social, físico, ecológico, cultural, econômico. Não é o caso de minimizar seu papel na transmissão e assimilação ativa de saberes, mas de diversificar suas formas de atuação. Isso implica maior interação entre a instituição escolar e comunidade local, regional, nacional, ligando o mundo exterior ao cotidiano escolar e tornando mais eficaz sua própria contribuição ao mundo exterior pelo desempenho de suas tarefas específicas. É o que veremos, a seguir, mostrando como a prática educativa se manifesta na sociedade mediante distintas modalidades e diferentes instâncias.

As modalidades de educação

Nosso propósito neste tópico é considerar a educação em duas modalidades: a educação não-intencional, também chamada de educação informal ou, ainda educação paralela; a educação intencional, que se desdobra em educação não-formal e formal. Veremos, de um lado, em que se distinguem e, por outro, como se articulam.

Educação não intencional e educação intencional

Já há um bom tempo que os educadores progressistas descartam a ideia de conceber a educação como fenômeno isolado da sociedade e da política e de que a escola convencional seja a única forma de manifestação do processo educativo. Desde Marx e Engels, a educação somente pode ser compreendida como produto do desenvolvimento social, determinada pelas relações sociais vigentes em cada sociedade e, portanto, dependente dos interesses e práticas de classe, de tal modo que a transformação da educação é um processo ligado à transformação das relações sociais.

Uma tal concepção do processo educativo leva à ampliação do significado da educação na sociedade. E aqui destaca-se como necessária a distinção entre educação não-intencional e a educação intencional. Num sentido mais amplo, a educação abrange o conjunto das influências do meio natural e social que afetam o desenvolvimento do homem na sua relação ativa com o meio social. Os fatores naturais como o clima, a paisagem, os fatos físicos e biológicos, sem dúvida exerceram uma ação educativa. Do mesmo modo, o ambiente social, político e cultural implicam sempre mais processos educativos, quanto mais a sociedade se desenvolve. Os valores, os costumes, as ideias, a religião, a organização social, as leis, o sistema de governo, os movimentos sociais, as práticas de criação de filhos, os meios de comunicação social são forças que operam e condicionam a prática educativa. A despeito desse grande poder influenciador, tal educação ocorre de modo não intencional, não sistemático, não planejado; atua efetivamente na formação da personalidade, porém, de modo disperso, difuso, com caráter informal, não se constituindo em atos conscientemente intencionais. Isso não significa, absolutamente, que sejam negados seus efeitos educativos, mesmo porque é muito em função desses fatores e influências não-intencionais que se dá o processo de socialização. Além do mais, eles estão presentes em qualquer lugar onde ocorram atos educativos intencionais.

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Entretanto, não podemos confundir a educação não intencional, informal, com a totalidade do processo educativo. O processo de socialização não se identifica com o processo educativo, especialmente quando esse assume formas intencionais, sistemáticas. Não apreender essa diferença é cair no sociologismo que tende a ver a educação, exclusiva e unilateralmente, apenas como um processo decorrente da participação direta na vida social.

Surge, pois, no desenvolvimento histórico da sociedade, a educação intencional, como consequência da complexificação da vida social e cultural, da modernização das instituições, do processo técnico científico, da necessidade de cada vez maior número de pessoas participarem das decisões que envolvem a coletividade. A sociedade moderna tem uma necessidade inelutável de processos educacionais intencionais - implicando objetivos sócio-políticos explícitos, conteúdos, métodos, lugares e condições específicas de educação, precisamente para possibilitar aos indivíduos a participação consciente, ativa, crítica na vida social global. Acertadamente escreve RIBEIRO:

“A capacidade de aproveitar experiências não preparadas varia conforme a compreensão conjunta de experiências anteriores, uma vez que há um mínimo de integração do indivíduo no grupo, aquém do qual nem poderá aprender as situações comuns que não terão sequer sentido para ele”.(1965:71)

Educação não formal e formal

Faz-se necessário, de início, distinguir duas modalidades de educação intencional: a não-formal e a formal. E aqui encontramo-nos frente a questões que merecem uma reflexão mais detida. Que é a educação formal e a educação não-formal? Educação não formal é a mesma coisa que educação informal, não intencional? A educação formal se aplicaria apenas à educação escolar? A educação de adultos, a educação sindical, política, etc., por se darem fora do âmbito da educação escolar convencional, não teriam, também, caráter formal? O que não é educação escolar, terá sempre caráter “informal”? A recusa que se faz do caráter intencional e formal da educação por ver aí sempre um caráter ideológico e classista, não levaria a que as formas não convencionais ou alternativas de educação postulassem um romântico retorno à “comunidade pura”, onde a educação seria outra vez difusa, espontânea, informal?

Sendo o termo formal o elemento distinto das duas denominações, vejamos o que ele significa. Formal refere-se a tudo o que implica uma forma, isto, é algo inteligível, estruturado, o modo como algo se configura. Educação formal seria, pois, aquela estrutura, organizada, planejada intencionalmente, sistemática. Nesse sentido, a educação escolar convencional seria tipicamente formal. Mas isso não significa dizer que não ocorra educação formal em outros tipos de educação intencional (vamos chamá-las de não convencionais). Entende-se, assim, que, onde haja ensino (escolar ou não), há educação formal. Seriam atividades educativas formais também a educação de adultos, a educação sindical, a educação profissional, uma vez que nelas estão presentes a intencionalidade, a sistematicidade e condições previamente preparadas, atributos que caracterizam um trabalho pedagógico-didático, ainda que realizadas fora do marco do escolar propriamente dito.

A educação não formal, por sua vez, seriam aquelas atividades com caráter de intencionalidade, porém com baixo grau de estruturação e sistematização, implicando certamente relações pedagógicas, mas não formalizadas. Tal seria o caso dos movimentos sociais organizados na cidade e no campo, os trabalhadores comunitários, atividades de animação cultural, os meios de comunicação social etc. Seria, também no caso da escola, as atividades extra-escolares que proveem conhecimentos complementares, em concesão com a educação formal. O exemplo da escola mostra que, frequentemente, haverá, um intercâmbio entre o formal e o não formal. Uma associação de bairro, instância de educação não formal, poderá reunir as mães, durante três dias, para um curso sobre a importância do aleitamento materno onde se terão objetivos explícitos, conteúdos, métodos de ensino, procedimentos didáticos que são características de educação formal.

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Considera-se, pois, equivocado o entendimento de que formas alternativas de educação se constituem como não-formais ou informais. É preciso superar duas visões estreitas do sistema educativo: uma que o reduz à escolarização, outra que quer sacrificar a escola ou minimizá-la em favor de formas alternativas de educação. Na verdade, é preciso ver as modalidades de educação – informal, não-formal, formal, em sua interpenetração. A escola não pode eximir-se de seus vínculos com a educação informal e não-formal; por outro lado, uma postura consciente, criativa e crítica em frente aos mecanismos da educação informal e não-formal depende, cada vez mais, dos suportes da escolarização. Não levando em conta essa interpenetração, expressando o movimento de entrecruzamento entre as diversas modalidades de educação, cai-se em posições sectárias que só contribuem para a divisão da ação dos educadores. Nem negação da escola, nem isolamento da escola em relação à vida social. Vejamos a questão mais de perto.

Educação informal X Educação formal?

Convém, pois encetar um esforço para dissolver os reducionismos. Ver a educação como prática social dissolvida nos movimentos sociais é uma “sociologização” da educação que empobrece a Pedagogia; ver a educação apenas no âmbito escolar é pedagogismo, que empobrece a prática educativa escolar. Vejamos como se dão as interfaces entre as modalidades de educação, de modo a tornar mais rica a investigação e a intervenção político-educativa.

Nassif (1980: 277) define a educação informal como “o processo contínuo de aquisição de conhecimentos e competências que não se localizam em nenhum quadro institucional”, acrescentando ainda, seu caráter não intencional”. O mesmo autor utiliza-se do termo “funcional” para identificar práticas educativas decorrentes da impregnação do meio-ambiente em frente ao qual os indivíduos precisam adaptar-se. Entendemos, todavia, que o termo “informal” é mais adequado para indicar a modalidade de educação que resulta do “clima” em que os indivíduos vivem, envolvendo tudo o que do ambiente e das relações sócio-culturais e políticas impregnam as vidas individual e grupal. Tais fatores ou elementos informais da vida social afetam e influenciam a educação das pessoas de modo necessário e inevitável, porém não atuam deliberadamente, metodicamente, pois não há objetivos pré-estabelecidos conscientemente. Daí seu caráter não intencional. Essas relações educativas são contraídas independentemente da consciência das finalidades que se pretendem. Poder-se-ia argumentar contra essa ideia dizendo-se que essas circunstâncias que configuram a globalidade da vida social podem ser modificadas, transformadas, tendo em vista uma nova sociedade; assim, passar-se-ia de uma sociedade educadora para outra sociedade educadora. Todavia, cumpre constatar que tais transformações requerem uma ação educadora intencionada. Os processos educativos informais só se movem a partir de ações organizadas, conscientes, intencionais, ou seja, quando se pode prefigurar, antecipar resultados que se quer obter.

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O caráter não intencional e não institucionalizado da educação informal não diminui a importância dos influxos do meio humano e do meio ambiente na conformação de hábitos, capacidades e faculdades de pensar e agir do homem. A ênfase que muitos educadores têm dado e essa modalidade de educação tem contribuído especialmente para a compreensão da totalidade dos processos educativos, para além da dualidade docente-discente. Com efeito, a educação informal perpassa as modalidades de educação formal e não-formal. O contexto das vidas social, política, econômica e cultural, os espaços de convivência social na família, nas escolas, nas fábricas, na rua e na variedade de organizações e instituições sociais, embora não se constituam mediante atos conscientemente intencionais, não se realizem em instâncias claramente institucionalizadas e nem sejam dirigidas por sujeitos determináveis, formam um ambiente que produz suas consequências educativas. Refletem-se, por exemplo, em conhecimentos, experiências, modos de pensar; na determinação de oportunidades de trabalho ou nas opções sobre modalidades de qualificação profissional; na conformação a modelos de normalidade social, regras de convivência; princípio norteadores da conduta; na adoção de ideias políticas, tudo repercutindo no desenvolvimento da personalidade. Os estudos sobre educação e prática social, educação e trabalho, currículo e sociedade, educação e reprodução social, currículo explícito e currículo oculto são mostras do impacto dos elementos informais da educação nos processos educativos individuais.

Todavia, se não cabe identificar prática educativa com institucionalização e formalização, também não cabe minimizar a escola. Quando falamos em formação construção do homem, desenvolvimento da consciência crítica, desenvolvimento de qualidades intelectuais , referimo-nos a atos intencionados, objetivos explícitos, certo grau de direção e estruturação, o que não ocorre em contextos não intencionais. Exatamente por causa da importância dos processos educativos informais é que se postula a necessidade da educação intencional. Ou seja, a tomada de consciência dos influxos sobre os educandos do contexto global da vida social requer da prática educativa uma intencionalidade, isto é, processos orientados explicitamente por objetivos e baseados em conteúdos e meios dirigidos a esses objetivos. O problema é saber como tais processos podem ser transformados em atos conscientemente orientados ao assumir modalidades de educação formal e não formal. Nesse caso, cumpre destacar, no âmbito específico da educação escolar, a necessidade de investigação dos efeitos dos elementos informais da educação nos processos cognitivos e, principalmente, como tais elementos impregnam a própria natureza dos conteúdos e métodos de ensino. Nessa medida é que se pode encaminhar efetivamente a formação científica em função da consciência crítica, para além da conformação dos sujeitos ao que lhe impõe o meio social, é nisto que tem se empenhado a Pedagogia crítico-social dos conteúdos.

Outros sentidos da educação

termo educação é, também, empregado em três outros sentidos, conforme sugestão de MIALARET(1976: 12): educação-instituição, educação-produto e educação-processo.

A educação como instituição social corresponde à estrutura organizacional e administrativa, normas gerais de funcionamento e diretrizes pedagógicas referentes seja ao sistema educacional como um todo, seja ao funcionamento interno de cada instituição, tal como é o caso das escolas. Nesse sentido, falamos de educação brasileira, educação norte-americana, ou mesmo, de educação antiga, educação moderna, como falamos da educação escolar, da educação familiar enquanto instituições específicas. Cumpre esclarecer que a multiplicidade de modalidade educativas presentes na sociedade contemporânea não permite rstringir o sistema educacional ao sistema de ensino, nem reduzi-lo às suas formas estritamente institucionais ou oficiais. Como vimos anteriormente, há instâncias de educação não-formal que, a despeito de sua intencionalidade, não são necessariamente institucionalizadas tais como as atividades de animação cultural, os movimentos comunitários, etc.

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Enquanto produto, a educação tem o sentido de resultados obtidos de ações educativas, a configuração de sujeito educado como consequência de processos educativos. É o aluno educado como produto do sistema educativo. Quando dizemos: “o nível de ensino está muito baixo”, “os jovens de hoje saem da escola sem iniciativa e sem visão crítica “, “os universitários atualmente não sabem redigir uma linha”, é a educação-produto que estamos avaliando. Evidentemente, estamos aqui face à questão de objetivos e conteúdos da educação, seja escolar ou extraescolar, que refletem expectativas sociais. É a partir da avaliação da educação-produto que se pode formular ou reformular a educação-instituição.

A educação-processo corresponde à ação educadora, às condições e modos pelos quais se assegura a educação-produto. Admitindo-se que toda educação implica uma relação de influência entre seres humanos, a educação-processo indica a atividade formativa nas várias instâncias com vistas a alcançar propósito explícitos, intencionais de transformação da personalidade. A educação-processo denota a influência educativa organizada, com objetivos e conteúdos definidos, visando a certos resultados, distinguindo-se daqueles processos educativos informais, mais difusos e espontâneos. MIALARET, dá uma interessante definição da educação-processo:

“O fato da educação é uma ação exercida sobre um sujeito ou grupo de sujeitos, ação aceita e mesmo procurada pelo sujeito ou grupo de sujeitos, em vista de atingir uma modificação profunda, tal como novas forças vivas nascem nos sujeitos e estes se tornam, eles mesmos, elementos ativos dessa ação exercida sobre eles”.

Vê-se aí o processo educativo operando com três elementos: um agente, que está na origem da ação educativa, um modo de atuação (conteúdo/método) e um destinatário (indivíduo, grupo, geração). Outro autor, NASSIF (1980: 215), expressa assim sua concepção de processo educativo:

“a configuração do indivíduo e do grupo que resulta da ação educativa organizada ou que é estimulada por ela. Ou, também, como o processo em cujo transcurso se configura ou se desenvolve a vida humana, individual e grupal, conforme fins preestabelecidas e mediante o emprego de conteúdos e métodos orientados por esses fins”.

Considerando-se que a educação é uma ação, é a educação-processo que caracteriza mais propriamente o fato educativo, fornecendo as bases para a educação-sistema e para a educação-produto. E aqui cabe verificar objetivos e modalidade de educação conforme as idades, os vários agrupamentos sociais a atender, delineando a natureza e os vínculos entre a educação informal, não-formal e formal que se definem segundo o critério da intencionalidade ou não intencionalidade dos processos educativos.

Considerações sobre a setorização dos serviços educacionais

Nos tópicos anteriores, tentamos explicitar um entendimento dos significados e extensões do termo educação, bem como as modalidades em que se manifesta a prática educativa, sem perder de vista a necessária visão globalizante da questão. Trata-se, agora, de distinguir setores, instâncias, em vista da estruturação e organização das esferas que constituem os serviços educacionais. Nosso propósito é tão somente por algumas questões referentes à articulação entre as modalidades de educação (informal, não-formal, formal) e a integração entre educação-instituição, educação-produto e educação-processo, já que o sistema educativo não pode desvincular-se do sistema econômico, sistema produtivo, sistema cultural, etc.

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Comecemos pela noção de sistema. Esse termo indica um conjunto articulado e coordenado de princípios, instituições, estruturas, processos, para atingir determinados objetivos. O sistema educacional, assim, compreende o conjunto de instituições educativas intencionais, com certo grau de organização, de tipo formal ou não-formal. Inclui princípios filosóficos, éticos, políticos, leis e orientações normativas, aplicáveis à variedade de modalidades e instituições educativas.

Que modalidades e instituições integram, efetivamente, um sistema educacional? Se é possível prever uma setorização da educação não formal e formal, pode-se fazer o mesmo com a educação informal? Conforme vimos anteriormente, na sociedade estão presentes processos educativos informais, espontâneos, difusos, envolvendo práticas de socialização sem o caráter de institucionalidade e intencionalidade. Tais processos impregnam todas as esferas do educativo, mas é problemático tentar setorizá-los. Por outro lado, é fato que certas funções educativas vão-se diferenciando e se especializando, concentrando-se em instituições e formando sistemas e subsistemas (caso típico das tarefas de ensino). Ao falarmos, pois de sistema educacional, não cabe incluir aí funções educativas não institucionalizadas, informais, não intencionais. Todavia, nem por isso um sistema educacional se reduz à educação “formal”, já que há instituições educativas de caráter não formal, não convencional, nas quais há intencionalidade e certo grau de institucionalização e organização. Cumpre, assim, demarcar o entendimento de que sistema educacional compreende ações educativas que guardam o caráter de intencionalidade e institucionalidade, de tipo formal e não-formal. Com esse grau de abrangência, vê-se que não cabe identificar sistema educacional e sistema de ensino. Nesse sentido, uma lei que regula o ensino no País não deveria ser denominada “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”. Cabe perguntar se o Estado poderia normatizar sobre a educação nacional, uma vez que essa incluiria a educação na família, nos locais de trabalho , nos movimentos sociais, nos meios de comunicação de massa, nos partidos, nos sindicatos, nas organizações comunitárias, etc.

Vê-se que a setorização do sistema educacional é uma tarefa complexa. A dificuldade está em situar as modalidades de educação em instituições em função das ações educativas específicas que empreendem e em como elas se articulam. Com efeito, embora tenhamos atribuído ao sistema educacional a intencionalidade e a institucionalidade, é forçoso reconhecer que nem tudo o que é intencional converte-se obrigatoriamente em institucional; e o que é intencional não prescinde, por sua vez, dos elementos informais da educação.

Todavia, arriscamos propor uma setorização, ainda que esquemática, numa tentativa de explicitar a interpenetração entre a educação informal, não-formal e formal, conforme instituições que as implementam e ações educativas que as operacionalizam.

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O gráfico mostra as possibilidades de integração e articulação entre as modalidades de educação e as instituições correspondentes. Colocamos num extremo a educação informal, noutro a educação formal e, no meio, a educação não-formal. Por ser essa um tipo intermediário, tem conexões muito próximas com as outras duas, porém distinguindo-se da primeira por implicar em ações educativas intencionais e deliberadas e com um grau mínimo de organização e, da segunda, por realizar-se fora do âmbito do escolar convencional, ainda que nem por isso escape de certa “formalidade”. Como vimos, a educação formal e a não-formal são sempre perpassadas pela educação informal; dado o caráter intencional daqueles, cabe-lhe contemplar nas ações educativas, objetivos, conteúdos e métodos que considerem, criticamente, as múltiplas influências configuradoras provindas no ambiente natural e sócio-cultural. Por sua vez, educação formal e não-formal interpenetram-se constantemente, uma vez que as modalidades de educação não-formal não podem prescindir da educação formal (escolar ou não, oficiais ou não) e as de educação formal não podem separar-se da não formal, uma vez que os educandos não são apenas “alunos”, mas participantes das várias esferas da vida social, no trabalho, no sindicato, na política, na cultura, etc. Trata-se, pois, sempre, de uma interpenetração entre o escolar e o extraescolar.

Essas considerações não esgotam a questão da setorização. Uma análise mais completa implicaria a discussão da política educacional e da articulação do sistema educacional e seus subsistemas com o sistema econômico, sistema produtivo, sistema cultural e outros, questões que já têm merecido estudos de outros autores.

Os propósitos deste artigo talvez tenham sido ambiciosos demais devido à complexidade do tema, ao caráter multifacetado do fenômeno educativo e, certamente, à notória imprecisão que guardam os conceitos aqui tratados. Alguns leitores poderão ver no texto certa tendência formalista, mas julgamos legítimo postular a busca de alguma precisão conceitual. Além do mais, procuramos acentuar as relações necessárias das instituições educativas com o contexto social mais amplo, de modo a ver seus processos e seus produtos como ingredientes imersos na reprodução social. As questões que tratamos envolvem outras análises, a partir de uma variedade de enfoques. O texto, pois, é matéria de discussão, à busca de maior aprofundamento.

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Figura 1

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