A faísca dos lugares inquietos: redes e práticas artísticas

Autoras

Lilian Amaral e Liliana Fracasso

Lilian Amaral é artista visual, pesquisadora e curadora independente. Doutora e Mestre em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da USP e Universidad Complutense de Madrid. Pós-Doutorado em Arte, Ciência e Tecnologia pelo Instituto de Artes da UNESP e Pós-Doutora em Arte e Cultura Visual pelo PPGArtes|UFG. Professora visitante das Universidades de Girona, Barcelona, Politécnica de Valencia, entre outras. Integrante de diversos grupos de Pesquisa no Brasil e exterior, entre os quais BR : AC – Barcelona Recerca, Art y Creació / Universidade de Barcelona e MediaLab / UFG.

Liliana Fracasso es arquitecta (Politécnico de Milán), Phd Geografía (Universidad de Barcelona), Msc Planificación urbana y territorial aplicada a los países en vía de desarrollo (Instituto Universitario de Arquitectura de Venecia). Profesora-Investigadora Universidad Antonio Nariño lili.fracasso@uan.edu.co

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A faísca dos lugares inquietos: redes e práticas artísticas

A presente investigação centra-se em como os lugares inquietos, que abordados do ponto de vista conceitual, são a expressão de três importantes fatores que apresentam interdependência e caracterizam alguns aspectos relevantes da cidade contemporânea: 1) mobilidade; 2) vitalidade; 3) liminaridade e performatividade (Fracasso, 2008, 2013, 2014).

Neste artigo argumenta-se como as práticas artísticas representam a faísca dos lugares inquietos, a ignição que procede das redes, dos coletivos de artivistas, dos profissionais e não profissionais do campo da arte que mantém um compromiso com o território, que o transformam e que transformam, intencionalmente ou não, o sentido mesmo do projeto e, sobretudo, o sentido de habitar o habitat popular, de “produzir lugar” na cidade contemporânea.

Habitar o mundo, portal, lugar, diálogo são metáforas que permitem visualizar a atmosfera na qual a compreensão do encontro seja possível. Habitar como sinônimo de criação de um espaço onde o humano possa emergir, construir situações.

“Nossa ideia central é a construção de situações, quer dizer, a construção concreta de ambientes momentâneos da vida e sua transformação em uma qualidade afetiva superior. Temos que colocar em andamento uma intervenção ordenada de fatores complexos de dois grandes componentes em perpétua interação: o cenário material da vida e os comportamentos que entranha e que o desordenam” (Debord, Guy.1957).

Fomentar lugares onde a transformação não esteja determinada, lugares onde o objetivo não seja preconcebido. Este esforço pode originar novas instituições, novos conhecimentos ou linguagens. Sua finalidade é criar lugares como observatórios do território e como laboratórios de criação e desenvolvimento de projetos, processos.

Os termos “práticas artísticas” sugerem, em primeira instância, as técnicas ou meios que um artista utiliza para criar arte, assim como sua aproximação conceitual ou método. Não obstante, a concepção de “prática artítica” contemporãnea se tornou muito mais ampla que no pasado pois o objeto da arte tem-se moficiado ao longo dos séculos e deforma substancial, a partir do final do século XIX, de acordo com as transformações econômicas, sociais e políticas ocorridas no mundo Ocidental.

A partir dos anos sesenta a produção artística no espaço urbano, fora das galerias e museus, recorre à idéia de que a arte existe para além dos circuitos artísticos tradicionais, do mercado e das instituições culturais; e que a dita idéia de arte pública deveria ser diferente da arte moderna que dominou as décadas anteriores nas quais a cidade é outro espaço de exposição para a arte. Esta nova idéia de arte pública não apenas se situa no espaço urbano como atua e se vincula ao contexto da cidade.

Fonte: Projeto práticas artísticas…Universidade Antonio Nariño. Observatorio de “lo patrimoniable” Usaquén - Registro audiovisual do projeto. Intervenção Glenda Torres e estudantes, Universidade El Bosque, Faculdade de Artes. Bairro Usaquén-Pañuelito, Bogotá, 2016.

Na atualidade, as práticas artísticas representam, de um lado, ferramenta de pesquisa e conhecimento da realidade e ainda, ferramentas de ação que alcançam o status de “arte fora de si mesma”, ou arte pós-autônoma, segundo o pensamento de García Canclini,

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“Com esta palavra me refiro ao processo das últimas décadas em que aumentam os deslocamentos das práticas artísticas baseadas em objetos, para práticas baseadas em contextos, até chegar à inserção das obras em meios de comunicação, espaços urbanos, redes digitais e formas de participação social, onde parece diluir-se a diferença estética” (García Canclini, 2010, p.17).

As práticas artísticas contemporâneas, que poderiam entrar na categoria de new genre public art (Lacy, 1995), despertam um interesse crescente como marco para a aprendizagem e pelo valor que agrega em termos de implicações imateriais, demandas sociais e condição ordinária da vida urbana cotidiana.

Neste sentido, as atuais práticas artísticas consistem, em geral, em voltar a caminhar a cidade (praticar a deriva urbana), a percorrê-la, re-descobrí-la, observá-la, mapeá-la, re-significá-la, utilizando todos os meios disponiíveis. Além de fortalecer a dimensão cultural do espaço público, atua como expressão política.

Os avanços tecnológicos vão condicionando os fatores sócio econômico culturais estabelecendo formas de intercâmbio mais complexas, assim como mais complexas tornam-se as mediações: técnicas, semânticas e estéticas distintas, sustentam a produção e transmissão de informação integrando a palavra, a imagem, o movimento e o som, por meio de linguagens diversas, formatos e suportes. Assim, a comunicação e a expressão artísticas intervêm em variados modos de construção social.

Neste contexto as práticas artísticas incorporam miradas críticas, analíticas ou propositivas que possam implicar determinados segmentos da população, o que de certa forma, lhes permitam formular alternativas para perceber, afrontar e participar de processos que incidam no território. A arte/vida é a arte da aventura do real. Ensinar a ver novamente aquilo que acontece na rua. A arte viva é a contemplação e a comunicação direta. Entendemos que como artistas devemos nos colocar em contato direto com os elementos vivos de nossa realidade: movimentos, tempos, gente, conversas, odores, rumores, lugares e situações.

Lugares habitáveis, modelados sobre a base da imagem metafórica de um espaço intermeio. Lugares de encontro que representam passagens que nos ajudam a atravessar de um lugar a outro, de uma dimensão a outra. Passagens como momentos construídos de silêncios, pausas que dão perspectiva, momentos de dúvida, de incerteza (Amaral, 2016).

A pessoa humana está situada entre as coisas do mundo, no meio, e construir o “fazer aparecer” é habitar um espaço. De estar presente em meio ao mundo, das coisas, das pessoas, advém a condição necessária à existência propriamente humana e é a relação com o outro o que permite estar presente no mundo e habitá-lo.

Fonte: Projeto práticas artísticas…Universidade Antonio Nariño. Observatorio ”de lo patrimoniable” Pardo Rubio- Registro audiovisual do projeto. Celebração do Aniversário do Bairro El Paraíso, Bogotá, 2016.

A mobilidade do lugar

O primeiro fator que conforma os lugares inquietos faz referência à mobilidade como efeito da globalização (Bauman; Apadurrai), assumindo uma acepção um tanto ”ampla” do termo, como diría Doreen Massey, que “apela a uma visão de uma mobilidade total sem restrições, de um espaço livre de obstruir” (Massey in Albet y Benach 2012: 140). Já sabemos que as barreiras na realidade existen e são muitas, trancam especialmente a passagem das pessoas e deixam circular muito mais livremente energias, produtos, comunicações, dinheiro, drogas, prostituição...

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Na “inevitável narrativa” da globalização (Massey in Albet y Benach 2012), podemos compartilhar a ideia de Bauman segundo a qual “ainda que não enfrentemos as ruas e saltemos de um canal a outro, estamos em movimiento em um sentido mais profundo, não importa se nos agrade fazê-lo, ou, opostamente, o detestemos (…). Não é possível “permanecer quieto” sobre a areia movediça. No caso colombiano, por exemplo, com o qual vimos estabelecendo cruzamentos no sentido de busca de novos contornos para as dimensões do “patrimoniável”, a partir de implicações com as práticas artísticas contemporãneas, a dita “areia movediça” assume contornos muito dramáticos pelo deslocamento forçado de muitas familias por causa da violência. Pois “durante 2013, no marco do conflito armado interno colombiano graves abusos continuaram a ser cometidos por parte de grupos armados irregulares como as guerrilhas e os grupos sucessores de paramilitares. Mais de cinco milhões de colombianos tem sido deslocados internamente, e a cada ano, ao menos 150.000 pessoas seguem abandonando seus lares, o que tem gerado a segunda maior população de deslocamentos internos do mundo”Informe Mundial 2014: Colômbia- Observatório dos direitos humanos: Human Rights Watch é uma das principais organizações internacionais independentes dedicadas à defesa e à proteção dos direitos humanos)..

“Hoje as fronteras não desaparecem, ao contrario, se multiplicam e tendem a materializar-se em articulações e lugares diferentes daqueles clássicos (...) os “confins territoriais” não se encontram simplesmente nas “fronteiras” no sentido geofísico da palavra, mas se difundem por meio de uma multiplicidade de lugares sociais” (A. Mubi Brighenti)

Se por um lado, parte la globalização tem demostrado sua força para deslocalizar empresas e atividades e desterritorializar a vida das pessoas, indicando com isso a escassa ou nula relevância dos referentes territoriais, por outro, tem comportado fenômenos de transterritorialidade, multiterritorialidade, multilocalização, reterritorialização (Mato, 2007) e “contrageografias” (Saskia Sassen, 2003), com a geração de casos emblemáticos de “cidades radicais” em espaçõs liminares, lugares inquietos por excelencia, como é o caso de Tijuana. É aí onde Teddy Cruz, urbanista californiano de origem guatemalteca questiona o papel do arquiteto tradicional e propõe outras ações, explorando todas as possibilidades da ‘cidade informal’ na hora de desenhar uma nova maneira de urbanizar o mundo. Teddy Cruz trabalha precisamente na fronteira Tijuana-San Diego e defende os bairros fronteiriços de imigrantes como lugares de produção cultural, epicentros os quais ha que se repensar a política urbana, a moradia esequível e a infraestrutura cívica (Diario Design, 20 abril 2015).

A artista Marcela Quiroga Garza realiza sua obra precisamente nos espaços fronteiriços, neste caso, entre México e Guatemala. Investiga a partir do repertório visível da mobilidade de pessoas, coisas e acontecimentos, uma realidade que se dá, supostamente, fora das normas legais que regem os estados nacionales, em um suposto espaço de ilegalidade onde as coisas se solapam (tráfico de pessoas, drogas, armas, gasolina). Sua mirada crítica se dirige para as consequências do regime de ‘diferenças’ econômicas, étnicas, de gênero, religiosas que são reproduzidas pelo sistema hegemônico capitalista. Em seu site a artista argumenta que “em conjunturas determinadas é necessária a revisão da pertinência e vigência de alguns conceitos como arte, conhecimento, processo e prática”.

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A vitalidade do lugar

O segundo fator refere-se à vitalidade dos lugares (segundo Georg Simmel, Isaac Joseph, Erving Goffman, entre otros, contudo, aquí nos referimos especialmente aos restless site de Amin e Thrift, 2002), no sentido que aponta para a existência de um espaço viviente em vez de vivido, de uma cidade que se apresenta como "um conjunto de processos, não raro desarticulados e de grande heterogeneidade social; um lugar de conexões próximas e distantes, uma concatenação de ritmos, sempre movendo-se em novas direções” (A. Amin e N. Thrift ). Espaços vivientes que com frequência recordam e esquecem de forma incoerente seus mesmos processos de territorialização!

Cabe aqui lembrar que o território se configura a partir de diferentes processos, de atos transformadores que o homem exerce sobre a terra por meio do controle simbólico, organizativo e material (territorialização), que modificam a paisagem natural e a transformam em território, em “artefato antópico”: o territorio não existe na natureza. (Turco, 2010).

Fonte: Projeto práticas artísticas…Universidade Antonio Nariño. Observatorio ”de lo patrimoniable” Pardo Rubio- Registro audiovisual do projeto. Atividade da Escola de Break Dance, Bairro Las Cruces, Bogotá, 2015.

Em âmbito mundial, nos últimos decênios, os procesos de territorialização tem sido influenciados pela globalização, a informatização, a expansão da cidade (cidade difusa): causas de uma nova “revolução urbana”, que vem desestruturando as cidades modernas e os espaços públicos, rompendo cânones. Os efeitos, especialmente na América Latina, se observam nas desigualdades sócioeconômicas e na dualidade das cidades: por un lado, os setores urbanos formais do desenvolvimento internacionalizado e, por outro, os setores urbanos informais que escassamente sobrevivem.

A ideia de território como palimpsesto, que se re-escreve constantemente não é nova (Corboz, 1985), porém, a dita re-escritura deve ser considerada críticamente, pois os processos mundiais associados com a globalização tem transformado a produção da territorialidade, gerando uma oposição aparente entre o global e o local, sobretudo, a ilusão de poder viver sem considerar adequadamente o territorio. Contudo, o território não é somente a base de nossas atividades econômicas, tampouco é o “burro” que as carrega, não é somente recurso, mas é também, patrimonio cultural (Capel, 2014).

Fonte: Projeto práticas artísticas…Universidade Antonio Nariño. Observatorio ”de lo patrimoniable” Pardo Rubio- Registro audiovisual do projeto. Celebração do Aniversário do Bairro El Paraíso, Bogotá. Mural: idealização de Oscar Alemán e Heiler Torres com a participação da comunidade, 2016.

Lamentavelmente, nos últimos vinte anos a demolição se converteu no negócio urbano mais colossal (La Cecla, 2008), por isso, apesar de que nunca foi tão protegido pela legislação, o patrimônio cultural nunca foi tão ameaçado em âmbito mundial (Capel, 2014).

“O patrimonio transcende uma mirada, uma expressão das relações objetivas e subjetivas que os homens estabelecem com outros homens, seu passado, seu momento histórico, seu lugar de assentamento e seu entorno natural, suas necessidades radicais e sua ideia de futuro. Através do patrimônio, a memória nos coloca, no presente, a servicio do futuro (Cantón Arjona, 2013) “e a memória, como já mencionado, não está no passado, está no futuro, conectar o passado com o presente e com o futuro é precisamente o que atualmente se está perdendo, cada vez mais (Samuel Arriarán, 2014).

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Fonte: Projeto práticas artísticas…Universidade Antonio Nariño. Observatorio ”de lo patrimoniable” Pardo Rubio- Registro audiovisual do projeto. Celebração do Aniversário do Bairro El Paraíso, Bogotá, 2016.

Os bens patrimoniais não são unívocos, pelo contrário, são “equívocos” (Cantón Arjona, 2013), pois encarnam e simbolizam valores às vezes em conflito (o valor estético, o valor da originalidade e unicidade, ou o valor testimonial de uma crença ou de uma forma de vida) que alguns homens sabem comutar em espaços de esperança e outros, mais sagazes e egoístas, em renda de monopólio (D. Harvey, 2013, p. 163). Os processos de transformação territorial afetam de forma contraditória o patrimônio cultural (material e imaterial) e os esforços para patrimonializá-los.

Fonte: Projeto 24 horas uma linha na Cidade, 2014. ¿Qué es patrimonio para usted? Museu Aberto | Brasil, Museu de Arte Contemporânea de Bogotá - MAC, Universidade Antonio Nariño, La Casa Voladora, Galería Marta Traba / Memorial ae América Latina e POCS. Intervención Liliana Fracasso, Francisco Cabanzo, estudiantes da UAN e Associação cultural e esportiva cerros Orientales, Luis Guerrero. Bairro Pardo Rubio, Bogotá.

Falar de “patrimoniável”Prácticas artísticas experienciales para el reconocimiento de lo patrimoniable en Colombia: el Hábitat Popular y el Hábitat ancestral contemporáneo en lugares pilotos (Municipio de Choachí, Mesitas del Colegio, Bogotá D.C. - Barrios Pardo Rubio, El Minuto de Dios, Las Cruces- Municipio de Sibundoy, la localidad Rafael Uribe Uribe, Municipio de Facatativá). Proyecto n. 2015027 Universidad Antonio Nariño. Investigadora principal Liliana Fracasso; co-investigadores Yenny Ortiz; Heiler Torres, Francisco Cabanzo y Glenda Torres (Universidad El Bosque); socios: Lilian Amaral (Museu Aberto/UFG), Noemí Durán (La Casa Voladora), Museo de Arte Contemporáneo de Bogotá, Minuto de Dios. facilita, no nosso entender, reconhecer e assumir um quid pro quo já existente no conceito de utopía concreta de Ernst Bloch, resumido nas palavras em alemão noch nicht que podem ser traduzidas em português de duas maneiras: “todavia não” (carência) e “ainda não” (esperança). S contudo não é P: o sujeto todavia não é predicado, nesta frase apresentam-se as chaves ontológicas do pensamento de Bloch, significa, que “o sujeto já o está sendo, contudo não de todo, lhe falta um ponto de maturação” (Martínez Contreras, 2004). O patrimoniável é o “ainda não”: sempre está em evolução, captura a heterogeneidade e as diferenças, não conclui nunca e se constrói sobre as práticas, demanda processos de pesquisa/criação participativos, baseados na experiência direta e no diálogo de saberes.

Fonte: Exposição #queespatrimonioparati Respostas em “24 horas uma linha na cidade”. Lugar: Museu de Arte Contemporânea de Bogotá – MAC, 18 novembro 2015. Convidam o Museu de Arte Contemporânea de Bogotá e a Universidade Antonio Nariño. Intervenções de grafiti e break dance na praça do Minuto de Deus.

Acreditamos que por meio das práticas artísticas podemos reconhecer em uma comunidade desejos utópicos, conciência antcipadora, imágens desejantes ou espelho, identidade, trata-se das categorias blochianas que explicam a função da utopía concreta. Esta pode resumir-se em cinco pontos-chave que a definem. La utopia concreta é

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1. protesto abierto contra o status quo, pois nasce da insatisfação;

2. otimismo militante: não bons desejos, mas trabalho concreto e decidido, que mobiliza as pesoas;

3. esperança, pois o conteúdo da função utópica é precisamente, uma esperança fundamentada no conhecimento e das condições reais;

4. conteúdo histórico da esperança que está nas imagens e na cultura (literatura, cinema, etc.) referidas a um horizonte histórico concreto (a arte tem a importante função de antecipar o que todavía-não-é/ainda-não-é);

5. mundos alternativos que movem a consciência a criá-lo, não é mais além, mas mais aqui, em um transcender sem trasncendência.

A liminaridade e performatividade do lugar

Finalmente, a existência de lugares inquietos está associada à presença de espaços liminares, altamente complexos e que são ao mesmo tempo os lugares onde se manifiesta a estética contemporánea, a criatividade e a inovação, seja no real ou no virtual do ciberespaço.

A virtualidade é um fenómeno próprio de nossa consciencia do espaço, não é algo novo em nossa civilização, como já argumentou Tomás Maldonado (Maldonado, 2005). Não obstante, o desenvolvimento das tecnologias do virtual tornam possíveis conceitualizações que nunca se haviam dado antes. A experiência do virtual é vivida em um tempo definido, depois de a termos vivido, ressurgimos do “mundo sintético” e voltamos ao espaço tradicional, pois “não existe uma virtualidade que seja capaz de impregnar a vida de todos nós por todo o tempo” (Maldonado, 2005, p. 153)

A virtualidade oscila entre possibilidade e realidade. Esta pode referir-se tanto à aparência (aparência digital no caso específico) como a uma maneira de ser “que não se enfrenta tanto a realidade como à atualidade, não é tanto o contrario do real quanto do atual” (Marchán, 2006, p. 40).

De fato, conformam os lugares inquietos, precisamente, os espaços mais críticos, liminares, portais e áreas de margem ou de fronteira, caracterizados pela fragmentação, a hibridação e a recomposição, em um incessante fazer-se e desfazer-se dos ajustes territoriais e das identidades (Canclini, 1989). "Confins territoriais" que, como mencionado anteriormente, não se encontram simplesmente nas "fronteiras" no sentido geofísico da palavra, mas que se difundem por meio de uma multiplicidade de lugares sociais. (A. Mubi Brighenti, 2009). Em tais lugares, aparece também incesante, e com frequência, improdutiva, a busca de uma “explicação” dos “fatos” (segundo um pensamento lógico-científico ou paradigmático) mais promissor parece ser o “pensamento narrativo” que assume uma função conectiva na construção do sentido das ações, desenvolvendo processos interpretativos da realidade (Jerome Bruner; Paul Ricoeur; Angelo Turco).

Quem vive na cidade utiliza a tecnología, os meios de comunicação e de informação. A interatividade dos usuários telemáticos cria lugares específicos, espaços públicos virtuais, que servem para compartilhar conhecimentos, informações e emoções. Nas praças virtuais o pensamento está escrito e compartilhado por várias pessoas. Novos mapas mentais descrevem a vivência dos espaçõs com procedimentos de co-cartografias ou community mapping; as web communities contribuem para a criação de "realidades aumentadas" ou criam taxonomias específicas (folksonomy) (Fracasso, 2013).

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As referências geográficas e a informação a compartilhar se constroem por meio do social tagging ou social mobile tagging. As produções digitais coletivas se utilizam para descrever, comumente, em tempo real, o "estado" do território, utilizando mapas para informar a administração pública sobre problemas ou questões que suscitam o compromisso cívico ou favorecem a pesquisa participativa e a busca de soluções rápidas e eficazes. A herança direta da tradição flânerie encontra nas novas tecnologias expressões inéditas do discurso narrativo além de um preciso âmbito de formação, de pesquisa-ação e de produção artística (urban exploration ou Urbex) (Fracasso, 2013).

Lugares inquietos como transitoriedades e espaços intermeios sugere o valor do nômade – em seu sentido mais profundo – como estratégia de criação e interação. Além disso, encerra três grandes eixos sobre os quais construímos nossa ação artística e investigativa: 1) a criação de situações como procedimento criativo; 2) a situação de interação como forma de arte colaborativa; 3) o contexto como situação de criação e o compromisso como horizonte político e poético (Amaral, 2016).

Deste modo, para onde confluem estes três grandes eixos, construímos uma forma singular de habitar o mundo, de construir um lugar onde o encontro e o diálogo sejam possíveis. Trata-se de abrir, como mencionado inicialmente, espaços de experimentação e reflexão para si mesmo, capazes de abrigar também a outros.

A liminalidade (Van Gennep, Turner) representa uma categoria conceitual e analítica mutuada pela geografia, interessante e útil para investigar a cidade contemporânea. Liminar é uma condição de pasagem, um espaço à margen: uma interface em um sentido amplo, fronteira entre ação individual e social, entre atualidade e potencialidade, entre superfície e profundidade. Representa a insuficiência da observação empírica (Turco), por isso o estudo do espaço liminar deve iniciar pela qualidade das questões (teorias) e das conjecturas (métodos).

As práticas artísticas representam na liminalidade, uma maneira para ativar ou interceptar “lugar inquieto”; respondem ao impulso de “não-formar” olhares no sentido de gerar um tipo de cultura visual que seja capaz de dar forma e, ao mesmo tempo, informar a observação, a ação e o efeito do olhar sobre o territorio (Turco, 2010). As práticas artísticas encarnam neste sentido os “ritos de passagem”, para “passar o portal” e “agregar-se” a um mundo novo. Pois a liminalidade é abertura e ao mesmo tempo ambigüdade, muito próxima à communites, é manifestação anti-estrutural e anti-hierárquica.

“Já não é o ato de passar o que constitui o transito, é uma potência individualizada a que assegura essa passagem imaterialmente” (Van Gennep, 2008: 30, ed. or. 1909).

Fonte: Projeto práticas artísticas… Universidade Antonio Nariño. Observatorio de “lo patrimoniable” Minuto de Deus- Registro audiovisual do projeto. Intervenção “Em busca do templo perdido” idealização Iván Cano e José Orlando Salgado, realizaçõo com a participação da comunidade, Bairro Minuto de Deus, Bogotá, 2016.

A inquietude assoociada ao lugar. Uma perspectiva conclusiva, em processo.

O lugar inquieto é a expressão da articulação de múltiplos pertencimentos, cruzamento de referências locais e globais, do próprio e do distante, dentro e fora, perto e longe, que colocam em discussão as relações entre a materialidade dos objetos e os valores, crenças, fantasía e imaginários, identidades.

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“As identidades nunca estão dadas de antemão, mas são sempre o resultado de processos de identificação, que estão construídas discursivamente, a questão que se coloca é o tipo de identidade que as práticas artísticas críticas devem ser encaminhadas a fomentar” (Mouffe, 2007 p. 67)

A visão local, o lugar, a identidade territorial e narrativa estão em constante construção, assim como a identidade do sujeto que não possui um caráter unitário, não é uma identidade transparente racional, não transmite significados homogêneos. Neste sentido, as práticas artísticas e culturais são absolutamente fundamentais, pois constituem as identificações e as formas da identidade. Todas as práticas artísticas, ou bem contribuem para a reprodução do sentido comum dado, ou para sua deconstrução ou sua crítica. Por isso, todas as formas artísticas têm uma dimensão política, reside aí a faísca que promove a ignição dos lugares inquietos.

Referências

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