Governo Federal República Federativa do Brasil Ministério da Educação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Universidade Federal de Goiás

EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO ESCOLAR:

DIDÁTICA, CURRÍCULO E POLÍTICAS EDUCACIONAIS EM DEBATE

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SEÇÃO 3
AUTORES Jonathas Vilas Boas de Sant’Ana • João Henrique Suanno
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“PÉ NO CHÃO, CABEÇA LONGE”: a Escola Pluricultural Odé Kayodê como espaço de educação transformadora

Introdução

Enquanto instituição da modernidade ocidental (CANÁRIO, 2007) a escola convencional endossa e reproduz não apenas o modelo de pensamento reducionista da ciência moderna, mas também suas estruturas e hierarquias originadas na colonialidade do poder, como argumenta Sodré (2012). Por ser fundamentada na modernidade ocidental, a escolarização de massas como organizada hegemonicamente parte de um basilar encobrimento do Outro (DUSSEL, 1994) dentro das estruturas da colonialidade (QUIJANO, 1992) com sua matriz de poder (GROSFOGUEL, 2009) e seu pensamento abissal (SANTOS, 2009).

Entendemos que a produção discursiva de diferenças como inferioridade (SILVA, 2014), como acontece na escola (CANDAU, 2014), se dá não apenas no âmbito superficial das práticas e das relações cotidianas, mas por conta de uma base moderna excludente e reducionista. Assim, consideramos que para repensar a escola não basta propor a necessidade da inserção de novas metodologias ou ferramentas, como ocorre muitas vezes. Embora estas questões possam compor modelos reinventados de educação, é fundamental aprofundar a discussão no que se refere às bases paradigmáticas da educação estabelecidas na modernidade, pois é esta compreensão que ajudará a criar outras vias na realidade atual, especialmente no que concerne às diferenças culturais.

O presente capítulo se insere no contexto destes questionamentos e traz para análise o projeto e as práticas da Escola Pluricultural Odé Kayodê. Trata-se de um recorte do estudo de mestrado “Cadernos, tranças, flechas e atabaques: a Escola Pluricultural Odé Kayodê sob uma ótica decolonial, complexa, transdisciplinar, intercultural e criativa”, cujo desenvolvimento se deu durante os anos de 2016 a 2018 no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologias da Universidade Estadual de Goiás. A pesquisa se vincula ainda à Rede Internacional de Escolas Criativas, tendo sido organizada como um estudo de caso (YIN, 2015) com abordagem qualitativa (FLICK, 2009). As fontes de evidência foram a análise do projeto político-pedagógico, a observação em campo, entrevistas com professores e rodas de conversa com crianças. A discussão dos dados apresentados neste texto foi feita a partir de referenciais teóricos da complexidade, transdisciplinaridade e interculturalidade.

Sendo assim, a primeira parte do texto apresenta as bases teóricas que orientam o trabalho. Em seguida discutimos sinalizações de um caráter transdisciplinar e transformador na instituição estudada, especialmente no que se refere à sua proposta de educação pela diversidade cultural. Por fim, realizamos considerações sobre a potência da Odé Kayodê como escola que tenta se desviar dos marcos da colonialidade.

Complexidade e transdisciplinaridade na educação

Pensar complexo, na perspectiva de Morin (2000; 2015), é não fragmentar aquilo que é tecido junto; é considerar a relação entre as diversas partes constituintes de uma realidade em constante movimentação circular. A complexidade não é referente àquilo que é difícil, mas sim ao entrelaçamento entre unidade e multiplicidade, entre o todo e suas partes, entre o global e o local, entre ordem e desordem, entre subjetividade e objetividade, dentre outros aspectos. Nas palavras de J. H. Suanno (2010, p. 208), a complexidade é um aporte teórico que sustenta “uma perspectiva multidimensional-social, ecológica, econômica, política, histórica, mística, espiritual e cósmica [...] na busca de um novo olhar sobre a realidade”.

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De acordo com Moraes (1996, p. 61), esta

[...] nova percepção do mundo reconhece que o princípio da separatividade estabelecido pelo paradigma cartesiano-newtoniano, dividindo realidades inseparáveis, já não tem mais sentido. Desta forma, as separações mente/ corpo, cérebro/espírito, homem/natureza não mais se sustentam. Compreende a existência de interconexões entre os objetos, entre sujeito e objeto, o que promove a abertura de novos diálogos entre mente e corpo, interior e exterior, cérebro direito e esquerdo, consciente e inconsciente, indivíduo e seu contexto, ser humano e o mundo da natureza.

Pensar a educação com base no paradigma da complexidade leva propor que a escola ajude a viver e conviver com a diversidade de maneira respeitosa, “reconhecendo a unidade e a diversidade e promovendo sua integração” (SUANNO, J. H. 2014, p. 179). Educar é mais do que difundir informações; é um processo humanístico com uma ética capaz de religar o ser humano à natureza e à coletividade humana, num processo de construção da cidadania planetária.

Moraes (2015) sinaliza que nos interstícios da complexidade emerge a transdisciplinaridade calcada na lógica do terceiro incluído, nos níveis de realidade/níveis de percepção e na complexidade. Morin (2015) também entende que o paradigma da complexidade traz a necessidade de extrapolar os limites das disciplinas, tarefa que ele próprio empreende em sua construção teórica.

A disciplinaridade caracteriza-se como um olhar específico sobre a realidade que propõe um recorte acerca de um objeto de estudo específico a partir de uma determinada lógica e de um determinado método com suas regras e abordagens (SUANNO, M.V.R, 2014). A pluridisciplinaridade ou multidisciplinaridade é o estudo de um objeto de conhecimento de uma disciplina por várias disciplinas ao mesmo tempo; é o enriquecimento do objeto apenas em sua disciplina de origem. Já a interdisciplinaridade, continua Nicolescu (1999), é a transferência de métodos de uma disciplina para outra, mas mantém-se a estrutura disciplinar imóvel, sendo no máximo possível a criação de novas disciplinas, a aplicação de diferentes métodos dentro de uma mesma disciplina e a ampliação epistemológica de um determinado campo.

De modo distinto,

A transdisciplinaridade, como o prefixo “trans” indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento (NICOLESCU, 1999, p. 16).

Partindo das explicações emergentes da visão quântica sobre a realidade, o transdisciplinar vê que entre uma disciplina e outra há mais do que o vazio, existem flutuações e dinâmicas de realidades que não são alcançadas pela rigidez disciplinar. Nota-se que através das disciplinas há continuidades e descontinuidades não lineares, isto é, não há uma causalidade fechada como se concebia na perspectiva clássica, mas sim uma causalidade não linear, circular e retroativa, na medida em que diferentes fenômenos interagem com lógicas que são atravessadas em distintas disciplinas.

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Percebe-se também que há aspectos que transcendem a disciplinaridade, mesmo quando esta é justaposta, pois a realidade está muito além das disciplinas e, para compreende-la, é preciso também propor um olhar que não esteja preso nas barreiras metódicas fixas e estruturadas conforme lógicas particulares, pois a dinâmica do real é muito mais complexa e interativa que qualquer fragmentação. Tudo está interligado, como ajudam a entender as teorizações na ciência recente, esvaziando de sentido um paradigma que propõe um olhar reducionista (QUIJANO, 1992).

É a partir desta percepção que a transdisciplinaridade emerge para tentar abraçar a realidade em sua pluralidade e, a partir das disciplinas, da pluri e da interdisciplina, busca ampliar os referentes lógicos sobre os fenômenos cognoscíveis. Não são negados os saberes produzidos de modo clássico, mas reconhece-se suas limitações que são vistas no agravamento dos problemas do mundo, para os quais um olhar de disjunção não consegue articular possibilidades de saída (MORIN, 2015). A transdisciplinaridade, no que entendemos a partir de seu caráter trans, representa simultaneamente o trânsito entre diferentes disciplinas, a transcendência da lógica disciplinar, a transitoriedade incerta dos conhecimentos e também a transformação das disciplinas, dos sujeitos e da própria realidade a partir do trânsito, da transcendência e da transitoriedade.

Desde os estudos sobre o pensar complexo e transdisciplinar na educação notamos indicações de outras possibilidades de configurar a escola e promover uma educação que reencanta, religa, impulsiona e transforma a partir de uma base teórica divergente do paradigma tradicional da racionalidade/colonialidade. Destacamos que estes referenciais fazem rachaduras importantes na racionalidade moderna com a aceitação radical das diferenças e suas reverberações na educação, potencializando a decolonialidade.

Interculturalidade crítica na educação

A interculturalidade crítica se preocupa em “questionar as diferenças e desigualdades construídas ao longo da história entre diferentes grupos socioculturais, étnico-raciais, de gênero, de orientação sexual, religiosos, entre outros” (CANDAU, 2012, p. 127). A adjetivação crítica da interculturalidade confere a posição assumida de contestação das estruturas monoculturais da sociedade e dos padrões de poder fundados na modernidade como encobrimento do Outro reverberada na racionalidade abissal.

Interculturalizar a educação é então problematizar a configuração escolar binária da relação entre os seres humanos, é repensar o pensamento por oposição, por exclusão, ao qual habitualmente estamos conformados e segundo o qual a escola organiza seus tempos, espaços, relações sociais e curriculares. Portanto, trata-se de uma perspectiva decolonial (MALDONADO-TORRES, 2016) por propor sentidos deslocados diante da monoculturalidade da educação e irromper uma abertura epistemológica e dialógica.

Neste sentido, a interculturalidade crítica apresentada por autoras como Walsh (2011) e Candau (2016) é também uma proposta aproximada daquilo que Morin (2007) e Moraes (2015) tem discutido na perspectiva da complexidade e da transdisciplinaridade. Ao enfatizarem a necessidade de superar o paradigma newtoniano-cartesiano impulsionam também a abrir espaço na mente para a compreensão de que a diversidade é um princípio atravessado em toda a realidade. Sob esta ótica é promovida uma educação pluralista, ampla, dinâmica, ancorada em um remodelamento do pensamento para modos abertos e pertinentes à complexidade e diversidade do mundo.

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De tal modo, a perspectiva de educação intercultural crítica altera profundamente a escola, traz a complexidade do mundo real e leva a repensar a cultura escolar (formas e ritos da escola) e a cultura da escola (conteúdos e conhecimentos socializados). Segundo Candau (2010, p. 68), “É a própria concepção da escola, suas funções e suas relações com a sociedade, o conhecimento e a construção de identidades pessoais, sociais e culturais que está em jogo”. Esta afirmação vai indicando como a perspectiva intercultural como desdobramento do pensamento decolonial transdisciplinar e complexo é potente para reinterpretar e redimensionar a escolarização cristalizada na modernidade/colonialidade. Neste sentido, é preciso reinventar a escola por meio do questionamento e reconstrução das atuais estruturas, referenciais culturais e organização didático-pedagógica da escolarização.

A Rede Internacional de Escolas Criativas

Pensar uma educação intercultural crítica no sentido discutido neste estudo é dar espaço também à perspectiva da criatividade que impulsiona à transformação da educação. Afinal, uma educação monocultural abafa o desenvolvimento do pensamento alternativo, mina a possibilidade de formar pessoas criativas, como destaca Torre (2012). Em meio a relações de dominação e inferiorização a criatividade não é valorizada, mas subjugada frente a uma visão única. Todavia, quando há espaços de aceitação dos distintos modos se ser, sentir, pensar, fazer e viver, como propõe a interculturalidade, abrem-se rupturas para a divergência, para o desvio, para a criação. Cria-se um ambiente propício para que a criatividade desabroche. Neste raciocínio nos encontramos com a Rede Internacional de Escolas Criativas – RIEC. Uma escola criativa, como propõe Torre (2009, p. 55), tem alguns aspectos:

A escola como agente social criativo se caracteriza pela complexidade, consciência de metas compartilhadas, liderança transformadora e caráter ético. Sua gestão se destaca pelo conhecimento de suas forças e fraquezas, adaptação às condições do contexto, combinação de racionalidade e intuição, previsão de dificuldades e problemas, enfatizando o clima organizacional pela importância que tem no desenvolvimento da criatividade, tanto pessoal como grupal e coletiva.

Escolas que se alinham a esta perspectiva podem ser chamadas também de inovadoras, reinventadas, pois rompem com a lógica oitocentista e colonial de uma educação estagnada em processos de transmissão. Escolas criativas podem ser entendidas também como parte de uma movimentação social ampla em torno da inovação educacional, impulsionando denúncias da escolarização tradicional e anunciando possibilidades de uma educação criativa, como tem feito a RIEC. Esta rede emergiu em 2012 em torno de projetos existentes na Espanha e na América Latina que discutiam as intersecções e potências da criatividade na perspectiva da complexidade e da transdisciplinaridade. Há pesquisadores em mais de 13 países por todo o mundo contribuindo com a rede. Dentre seus representantes no Brasil, especialmente no estado de Goiás, estão Marilza Vanessa Rosa Suanno e João Henrique Suanno.

A rede conta com inspirações teóricas diversas e tensões interiores, expressando-se com a seguinte intencionalidade:

A RIEC visa reconhecer e estimular processos de ruptura com a educação tradicional, centrada no ensino de conhecimentos disciplinares fragmentados, na impessoalidade na relação entre professor-aluno, na padronização da aprendizagem que desconsidera os interesses do educando (SUANNO, M.V.R.; TORRE; SUANNO, J.H., 2014, p. 26).

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Se trata de reconhecer os potenciais criativos e inovadores de instituições transformadoras e não de propor um modelo de escola como ideal, tendo em vista que as realidades são contraditórias e reconstrutivas pela sua natureza complexa. A rede busca se aprofundar teoricamente para impulsionar transformações que não sejam meramente superficiais ou discursivas, mas partam de novas opções epistemológicas, ontológicas, metodológicas e políticas inspiradas em uma ecologia de saberes possibilitada pela elaboração de um pensar que se faz complexo e também transdisciplinar (MORAES, 2015).

Com o objetivo de operacionalizar suas proposições, a RIEC construiu o Instrumento para Valorar o Desenvolvimento de Instituições Criativas (VADECRIE) que traz dez categorias de análise construídas desde 2012 por diversos pesquisadores em todo o mundo (TORRE, 2012): liderança estimuladora e criativa; professorado criativo; cultura inovadora; criatividade como valor; espírito empreendedor; visão transdisciplinar e transformadora; currículo polivalente; metodologia inovadora; avaliação formadora e transformadora; valores humanos, sociais e meio ambientais. O VADECRIE foi utilizado no estudo de mestrado do qual este capítulo se desmembra. No próximo tópico discutimos a categoria da visão transdisciplinar e transformadora na Odé Kayodê.

A Escola Pluricultural Odé Kayodê como espaço de trans-formação na educação

A Escola Pluricultural Odé Kayodê é uma instituição de caráter particular comunitário situada na Cidade de Goiás – GO, existente de modo oficial desde 2004, mas gestada no interior do Espaço Cultural Vila Esperança desde o início da década de 1990. Atualmente a escola recebe crianças da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental.

A opção da escola por se nomear pluricultural, como disseram alguns dos profissionais nas entrevistas e em conversas informais, se dá por conta da urgência de valorizar a pluralidade cultural existente no mundo. Odé Kayodê, por sua vez, do iorubá, significa, de acordo com o projeto da escola “o caçador que traz alegria”. Mas, conforme a coordenadora comentou em conversa informal, Odé Kayodê ultrapassa a tradução, ganha sentido na força que estas palavras têm para representar a caça pela alegria, pelo conhecimento, pela vida. Também se trata de uma homenagem à Mãe Stella de Oxóssi, mulher negra líder religiosa de uma comunidade afro-brasileira na periferia de Salvador, na Bahia. Mãe Stella também é conhecida como Odé Kayodê. Estas sinalizações culturais aparecem nos documentos da EPOK de forma breve, mas nas concepções de alguns dos educadores há um aprofundamento e sistematização maior destes referenciais pedagógico-culturais que fazem a escola ser o que é.

Entendemos que uma das características desta escola é sua visão transdisciplinar e transformadora, aspecto que sinaliza na direção de ser uma escola criativa na perspectiva de Torre (2012). Trata-se da presença de uma visão integral da formação do ser humano em relação com a sociedade e com a natureza. Tal perspectiva se expressa, conforme Torre (2012), por meio de uma educação da vida e para a vida, congregando pensamentos, emoções e ações na construção de saberes para além do conhecimento acadêmico e científico.

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No projeto da Escola Pluricultural Odé Kayodê está explícita a concepção de formação humana integral que reconhece a multidimensionalidade do ser e preza para que não seja fragmentado ou desprezado: “Trata-se de uma ação para além do caráter pedagógico, é essencialmente política e cultural, preocupada com a formação humana em sua complexidade [...] considerando os aspectos afetivos, cognitivos e histórico-culturais dos sujeitos envolvidos” (PROJETO, 2015, p. 7). Em outro trecho afirma-se que “o que existe de mais importante em todo o processo educacional é a pessoa, o ser humano” (PROJETO, 2015, p. 14), que é “valorizado em todas as suas potencialidades, despertando atitude positiva frente à vida”.

Nas falas dos educadores a ideia de desenvolvimento ou formação integral, incluindo a perspectiva de transformação social, também é bastante presente:

É uma escola que vê os conteúdos ditos normais, de todas as escolas, não como mais importantes, mas um meio pra conseguir ser um ser humano integral (Educador Plural).

O objetivo nosso é que a pessoa seja inteira. Eu penso na pessoa, ela tem que ter conhecimento, mas ela tem que saber o que que ela faz com esse conhecimento [...]. Então a gente está querendo uma pessoa assim, sabe? Uma pessoa mais inteirinha, mais firme, mais presente, mais feliz! É isso, esse é o objetivo da gente! Sem tirar o tal conhecimento, que faz parte disso tudo. Agora, eu sempre falei que conteúdos, os conteúdos da escola, eles são pretextos, eles são pretextos! Eu uso o conteúdo pra eu conseguir autonomia, respeito, atitude e discernimento, essas coisas (Educadora e gestora Coletivo).

Eu penso que o objetivo principal da Escola Pluricultural Odé Kayodê é instrumentalizar da melhor forma essas crianças que estudam da educação infantil até o quinto ano pra que eles, primeiro compreendam a nossa realidade que é uma realidade originalmente constituída de forma diversa, que a gente consiga instrumentalizar, e aí eu tô falando mesmo de possibilitar aprendizagem e convivência, aprendizagem em todos os aspectos: cognitivo, afetivo, emocional, relacional, de conviver mesmo com a diferença [...] perfazer toda aquela matriz curricular, alcançando aqueles objetivos previstos [...] pra além disso, é de fato formar de forma inteira, integral (Educadora Diálogo).

Estas afirmações, embora não discutam a transdisciplinaridade, estão permeadas pela significação profunda e ampla desta perspectiva que prima pelo desenvolvimento do humano através de sua valorização como ser de corporeidade, emoções, racionalidade, sensibilidade, estética, sociabilidade, política, dentre outras dimensões que superam a transitoriedade disciplinar. Observamos que esta compreensão de transdisciplinaridade é vivenciada em muitas situações na EPOK e se expressa em condutas, atitudes, valores e saberes.

A escola busca o desenvolvimento humano desde uma perspectiva complexa, mesmo sem mencioná-la em seu projeto. Dá especial importância à corporeidade nos processos de educação, o que significa que os corpos não estão aprisionados a relações verticalizadas e à coerção mutiladora insistente na escolarização moderna que supervaloriza um tipo cultural de humano e trata os diferentes como desviantes, inferiores e carentes, como discute Candau (2012) a partir de estudos em diversas escolas brasileiras. A formação integral do ser, nesta perspectiva, não corresponde à formatação hegemônica de pessoas diferentes em identidades iguais, mas à potencialização das plurais formas de ser (WALSH, 2011) existentes no mundo a partir do cuidado com elas enquanto pessoas entretecidas pelos planos físico, cognitivo, emocional, relacional, espiritual, dentre outros. As falas acima deixam evidente que a escola não busca a mera instrução, mas sim o desenvolvimento humano (TORRE, 2012).

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Em distintas oportunidades a escola rompe com as estruturas rígidas dos tempos e dos espaços por meio de experiências que transcendem os conteúdos disciplinares integrando-os como uma parte do processo de desenvolvimento humano, mas sem se reduzir a eles em uma perspectiva transmissora. A educadora e gestora Coletivo evidencia a insatisfação com a escolarização hegemônica que é

[...] muito quadradinha, muito, assim, com uns formatos que a gente vê que não condiz com a vida. A vida evolui e a escola continua a mesma. Então, essa coisa incomoda [...] Mas essa ideia de “vamos fazer uma educação diferente, vamos pegar a educação pela arte, pela cultura, pela vivência”. Porque é assim que a gente aprende! (Educadora e gestora Coletivo).

A EPOK vai assim criando rachaduras no modelo convencional de escola, isto é, construindo outras possibilidades de educar no tempo contemporâneo, religando conhecimentos como uma ecologia de saberes que nunca está completa e fechada a uma nova perspectiva, mas fundamenta-se na abertura dialógica entre distintas epistemologias a fim de construir saberes mais relacionais, ecologizados, coletivos, horizontais e flexíveis, como propõe Torre (2012).

Evidentemente, a instituição está em processo nesta direção, pode ainda se aprofundar muito mais nas possibilidades, mas suas concepções compartilhadas pelos gestores e educadores, bem como suas ações, dão indícios de que estas reorganizações estão em curso de desprendimento das amarras coloniais, mesmo que este processo por vezes seja oscilante.

Os educadores organizaram as crianças a fim de saírem da escola pelo Quintal e chegarem até uma árvore próxima ao Rio Vermelho em um terreno ao lado da EPOK. Todos atravessaram uma cerca de arame farpado e foram para debaixo da árvore. Era por volta de 08h:00min quando todos fizeram uma roda com a árvore ao centro. Alguns sentaram, outros ficaram de pé. Uma educadora leu a história da Árvore Generosa, que levantava a temática do respeito ao meio ambiente. A leitura foi bastante formal, sem criar muitas conexões com as crianças. A educadora dinamizadora do Bom Dia comentou a respeito de princípios de sustentabilidade, perguntando sobre a história para as crianças e problematizando alguns aspectos.

As crianças são convidadas a tocar na árvore e senti-la e depois escolherem uma folha do chão para levar para a escola e escreverem seus nomes. Alguns minutos depois, em meio às brincadeiras e conversas entre as crianças, todos voltam para a escola pelo mesmo caminho e se dirigem ao Refeitório para o café da manhã. Algumas permanecem por ali, mas a maioria circula pela escola. Na Sala Passaredo há um aparelho de som tocando músicas populares tradicionais. Algumas crianças escrevem seus nomes nas folhas que pegaram embaixo da árvore. As turmas se reúnem em suas salas, mas nem todas continuam com atividades relacionadas à vivência.

A turma Tucano vai para um espaço atrás de sua sala de aula para pintar vasos de barro a fim de plantar sementes de diferentes tipos de flores. Segundo as próprias crianças essa atividade estava acontecendo porque iriam escrever poesias de flores em um momento posterior. As cores e formatos de desenhos nos vasos eram variadas e as crianças interagiam constantemente comentando e colaborando nos trabalhos umas das outras.

A turma Beija-Flor foi para a Praça do Sol plantar sementes de girassol com o auxílio do educador de referência e dois funcionários da Vila Esperança. Um dos funcionários liderou a atividade relatando sobre o cultivo do girassol pelos índios norte-americanos (registro em áudio de observações no dia 19 de setembro de 2017).

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Estes relatos de diferentes vivências articuladas em uma mesma manhã trazem elementos que permitem percebermos a presença de uma visão transdisciplinar e transformadora na escola, partindo de emergências para discutir conhecimentos científicos e saberes tradicionais, bem como despertando sentimentos em processos de experiência atrelada à realidade circundante. Estas vivências não são eventuais na escola, mas fazem parte do cotidiano e ainda assim não perdem sua potencialidade e impacto sobre a vida dos estudantes.

Consideramos que a EPOK, ao se construir com fortes elementos de interculturalidade crítica, rompe a rigidez de tempos, espaços, metodologias e conteúdos, bastante problematizada por Candau (2010; 2012; 2016) em seus estudos. Esta tessitura intercultural é brecha decolonial, no sentido que discutimos em nosso trabalho de mestrado, impulsionando a escola a ter caráter criativo e possuir aquilo que Torre (2012, p. 129, tradução nossa) aponta como “a flexibilidade dos horários, espaços e aspectos organizativos a respeito dos conteúdos acadêmicos, o que possibilita um diálogo entre as disciplinas”. Assim, evidenciamos que o entrelaçamento circular e retroativo entre as bases teóricas deste estudo, apresentando-se de distintos modos na realidade do caso estudado, é potente no sentido de mostrar que as diferenças culturais são promotoras de aberturas para uma educação criativa, dinâmica, transdisciplinar.

Neste sentido, é perceptível também o caráter transformador da visão de educação presente na Odé Kayodê especialmente ao “partir das nossas culturas originais, que seria a cultura africana, afro-brasileira e a indígena”, para usar as palavras do educador Resistência. Aliás, consideramos que é por insurgir desde estes referenciais culturais mais abertos a uma perspectiva circular e holística da realidade que a escola se constrói como horizonte transdisciplinar e transformador possível. Os seguintes trechos de entrevistas ajudam a entender que a visão e as práticas da escola partem fundamentalmente do gradativo aprofundamento dos gestores e educadores com elementos presentes nas culturas de matriz africana e indígena, sobretudo a ideia de circularidade/roda:

Eu acho que desde a roda, que é o princípio básico assim, em que todos podem se olhar, podem se ver, tem possibilidades igualitárias de se expressar. Esse é o princípio básico que norteia nosso processo educativo. E o trabalho com a ancestralidade, o reconhecimento das nossas raízes, dos saberes dos mais velhos, de quem veio antes da gente. Então tem vários aspectos que a gente tenta se amparar nas culturas ancestrais (Educador Liberdade).

É um jeito de viver! A gente trata a criança como numa tribo, ninguém é dono dela. Todo mundo é responsável por ela [...] todo mundo está atento com todo mundo, pra todo mundo se ajudar. Isso é um jeito tribal, é um jeito indígena e africano de ser (Educadora e gestora Coletivo).

Eu não conheço uma tribo indígena que não se encontra em roda, ou que a roda não seja significativa. [...] A roda é onde todo mundo se vê, todo mundo está igual, não tem ninguém à frente de ninguém, onde todo mundo tem o direito de falar, é só levantar a mão e você consegue ver [...] tem tudo a ver com a proposta da escola (Educador Resistência).

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Enquanto organização complexa, a EPOK valoriza a dialogicidade em seus processos sempre pensados em roda, articulando realidades, acontecimentos, perspectivas e emergências da realidade com o objetivo de auxiliar no desenvolvimento de pessoas com a capacidade de pensar o todo em relação com suas partes e superar os reducionismos e polarizações dogmáticas, como defendem Moraes (1996) e Morin (2015). A ideia da roda parece um aspecto fundante neste sentido, um enraizamento cultural que permite outras concepções daí derivadas.

As falas acima indicam que o fazer roda presente nas culturas de matriz africana e indígena é tomado como vivência que não está restrita à concretude de um círculo de pessoas ou de um espaço arredondado. Fazer roda significa enxergar que o mundo está em movimento ininterrupto e que tudo que está nesta grande roda da vida se entrelaça e pode ser percebido por cada pessoa de um modo particular, da sua posição própria na roda, até mesmo de cabeça para baixo como na capoeira. A roda é, por natureza, transdisciplinar, porque ali as coisas não se se prendem em cantos, mas giram, se relacionam e se transformam conforme o ritmo coletivo e também na interioridade de cada pessoa que se faz presente. É evidente que as culturas indígenas e africanas são as propulsoras deste tipo de pensamento que baseia a visão da escola.

De modo experiencial a Capoeira Angola, por exemplo, é um tipo de vivência em roda que apresenta às crianças a indissociabilidade entre as várias dimensões do ser humano.

O educador de referência da Capoeira Angola foi até à escola para se reunir com as crianças da turma Pica-Pau e leva-las para a Sala Ayó. Antes de sair da EPOK o mestre de capoeira comentou sobre a roda festiva na noite anterior como um momento de oportunidade para a vivência da capoeira enquanto linguagem que conecta corpo e mente e promove interação entre os participantes. As crianças vão para a Sala Ayó no Espaço Cultural Vila Esperança com este educador. Mais alguns momentos são dedicados à conversa antes de treinar os movimentos corporais.

Educador: Aí agora você vai escrever uma história e essa história ela vai ser escrita pelo seu corpo, pelos seus membros do seu corpo todinho. E a fonte, onde é a fonte nossa? Aqui [aponta para a cabeça], que você tem que tá memorizando, colocando tudo que você tá aprendendo agora. E o olhar que é esse farol do nosso carro, ele tem que tá aceso todo tempo, baixo, alto, você tem que colocar ele sempre. Então não pode dormir porque senão você vai bater. [...] a audição tem que tá muito bem. Eu só vou movimentar porque o canto tá fazendo eu movimentar, a bateria, o ritmo tá me dando a pulsação do meu coração me movimentar, tá me emocionando pra fazer isso, se não fica aquela coisa robô, aquela coisa robótica. Não. Tem que trabalhar de acordo com o que tá pedindo, é a onda do mar.

Criança 2: Movimentar o nosso corpo.

Educador: Isso! E aí você vai na alegria do que a pessoa tá cantando pra você. Quem tá cantando, tá cantando pra você: “ai ai ai dê, joga bonito que eu quero ver! Ai ai ai dê, joga bonito que eu quero ver!” [música de capoeira] (registro em áudio de observações no dia 16 de agosto de 2017).

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A circularidade em perspectiva cultural se encontra com a não-linearidade presente nas discussões do pensamento complexo e transdisciplinar feitas por Morin (2007) e Moraes (2008). Os saberes ancestrais milenares presentes nas culturas africanas e indígenas trazem elementos que recentemente tem sido admitidos pela cientificidade ocidental como lógicas organizadoras da realidade, como a inseparabilidade integral do ser evidenciada na Capoeira. Os subalternizados guardam em suas concepções contra hegemônicas potencialidades de superação da lógica disjuntiva espalhada globalmente na modernidade/colonialidade. Ter a roda como eixo pulsante e enérgico que inspira o processo pedagógico faz com que a EPOK esteja para além do trabalho sobre culturas historicamente inferiorizadas e se movimente no sentido de se forjar a partir delas.

[...] essa questão da circularidade muito forte [...] é fundamento mesmo de existência, fundamento dessa escola existir, é o jeito de viver, o jeito de estar nesse mundo, a presença de estar nesse mundo dentro da cultura indígena e africana, que é eu tá presente, eu tá assentada. A questão indígena quando a gente faz roda, quando a gente põe o pé no chão, quando a gente toca o maracá. Aquilo tudo tá o fundamento dessa escola, ter o pé no chão, a gente acreditar, e acredita, e quanto mais a gente se firmar nesse chão, mais possibilidade de voar a gente tem. Pé no chão, cabeça longe, e o equilíbrio necessário pra essas partes tarem onde querem estar, mas sempre conectadas, sem se romper (Educadora e gestora Esperança).

Com esta fala notamos que as matrizes culturais da escola não são apenas um elemento a mais da instituição, mas são a substância existencial que torna a experiência irrepetível, tão singular e potente. Antes de fundamentos pedagógicos advindos de teorias acadêmicas, as raízes da forma de pensar a educação na Odé Kayodê estão nas culturas africanas e indígenas, na valorização da resistência de modos outros de ser, pensar, viver, de re-existir, fazendo presente de algum modo a possibilidade de uma pedagogia aproximada à pluriversalidade (MIGNOLO, 2014) que se expande nas diversas maneiras de ensinar e aprender:

Bem, a gente não aprende só escrevendo, porque todo momento a gente tá aprendendo. Cantando, lendo, aqui conversando mesmo a gente tá aprendendo. E aqui a gente aprende isso, que a gente aprende de várias formas [...] A gente não aprende só sentado olhando pra um quadro, igual a tia fala, sendo uma máquina de xerox, só copiando, a gente tem que saber o significado daquilo primeiro pra depois fazer. E a gente aprende sentindo, com o corpo inteiro (Roda Arara Vermelha).

Entendemos que esta atitude de ruptura e transição da escola rumo a um novo paradigma da educação, como evidenciado pelas crianças, ocorre por conta de bases pedagógicas pluriversais enraizadas nas potências das culturas relegadas ao esquecimento e à inferiorização no contexto sociopolítico. Nesta medida, a Odé Kayodê transforma e se transforma por meio da construção de um modo pós-abissal de enxergar a realidade e de fazer educação aproximada às culturas de matriz africana e indígena. Caminha na direção de superar a disciplinaridade da colonialidade em prol da decolonialidade transdisciplinar, como propõe Maldonado-Torres (2016), mas também com a consciência profunda de que a diversidade do mundo está a produzir distintas epistemologias a todo o tempo, que mesmo sendo marginalizadas são vitais para possibilitar novos caminhos diante de modelos sociais e antropológicos em esgotamento por seguirem um pensamento cego e monocultural (SANTOS, 2009; MORIN, 2015).

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Entretanto, a escola não chega a romper totalmente com a perspectiva disciplinar na organização do currículo, no planejamento dos professores e nos materiais didáticos. Ao mesmo tempo, a visão compartilhada pelos profissionais é de que os conteúdos disciplinares são possibilidades de partir de uma certa visão da realidade rumo a alargamentos. Um conteúdo, atividade ou assunto pode ser trabalhado de modo a transcender a visão disciplinar e colocar como elemento central a reflexão sobre a realidade.

Notamos a criação de fissuras por meio de atividades que não negam o modelo disciplinar, mas que também não se prendem a ele, buscando a perspectiva interdisciplinar a partir de projetos temáticos e alcançando elementos de transdisciplinaridade como sendo a valorização central do sujeito humano em sua multidimensionalidade e em sua capacidade de problematizar a realidade.

A fundação desta escola se dá na perspectiva de formar integralmente e ao mesmo tempo transcender tal formação por meio do ato de transformar a realidade do mundo, criando um outro mundo possível a partir das vivências e das pessoas nelas engajadas. Este aspecto de contestação da realidade presente não é uma resistência passiva diante do cenário da colonialidade/modernidade, mas é a provocação da emancipação social e da autonomia dos sujeitos de seu interior para fora, aproximando-se ao pensamento decolonial (MIGNOLO, 2014). A escola opera esta rachadura especialmente pela preocupação central com o entrelaçamento das questões de identidade e diversidade, entendendo que ambas se relacionam e contribuem para a formação do sujeito humano em viés emancipatório, transformador. As falas a seguir apresentam um pouco deste aspecto nas concepções dos educadores.

[...] a gente zela muito pela construção da identidade de cada um, e não tem jeito de pensar na nossa identidade enquanto viventes e brasileiros, sem pensar na formação histórica do Brasil, que foi uma formação que teve como alicerce as culturas indígenas, africanas e europeias e todas as outras [...] O que que seria da educação se fôssemos todos iguais? Quer dizer, a educação ela é feita pra que todos sejam iguais. O que eu acho que esse espaço vem é dizer que não, educação não existe pra que todos sejam iguais, educação existe pra que todos sejam. Ponto. Sendo, cada um vai ser o que é (Educadora Presença).

[...] educar pela diversidade, pela possibilidade de se rever, e pelo respeito da convivência, onde eu posso ser o que eu sou e o outro também tem o direito de ser. E é essa a riqueza do conviver, eu aprender com o outro, e isso permeando o processo de leitura, de escrita, que é a alfabetização, mas a alfabetização também dos números, alfabetização de mundo mesmo: eu ler e escrever a letra, mas dentro desse sentido (Educadora e gestora Esperança).

Eu gosto muito de aprender quem a gente é [...] aqui a gente aprende muito que os indígenas, que os africanos são nossos antepassados e nós somos eles. A gente é indígena, negro e branco – nós somos tudo misturado e em alguns se destaca mais a personalidade, em outras não [...] Também a gente pode ser até mais branco de pele, mas a gente é negro por dentro, porque a gente tem nossas raízes (Roda Arara Vermelha).

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A visão que a escola traz é de uma educação pela diversidade e na diversidade a fim de possibilitar que a formação das identidades dos estudantes integre elementos culturais referentes à ancestralidade indígena e africana. Neste mesmo processo, é evidente a ênfase na urgência de estabelecer estruturas para a construção do respeito entre as pessoas com suas diferenças culturais. Nos trechos acima aparece uma ideia de educação que respeita a individualidade de cada um e tenta fugir à tendência escolar convencional de homogeneização e formatação de todos em um padrão humano ideal forjado na colonialidade. Uma educação para que todos sejam – e não para que todos sejam iguais no sentido de uniformização – em suas diferenças do que e como são está próxima da ideia de pluriversalidade epistemológica emergente por meio de relações interculturais, isto é, uma construção plural de modos de ser e saber possibilitada entre os sujeitos com – e por conta de – suas diferenças culturais. Deste modo, compreendemos que a proposta educativa da EPOK se aproxima da teorização discutida neste trabalho com a articulação de decolonialidade, complexidade, transdisciplinaridade e interculturalidade.

No mesmo sentido emerge um aspecto da interculturalidade crítica sobre a qual Candau (2012) trata e que entendemos tecido junto à visão transdisciplinar e transformadora da instituição. Estamos falando da emancipação social e a autonomia promovidas pela escola concebida como espaço de descontrução de estereótipos e de resgate das identidades construídas como diferentes e inferiores, assim como um ambiente com dinâmicas reconstruídas e permeadas pela crítica sociocultural. Questões como masculinidades, gênero, violência, deficiências físicas, etnicidades, enfim, diferenças culturais (SILVA, 2014), são discutidas em diferentes níveis na perspectiva de serem construções sociais que precisam ser enfrentadas desvelando a colonialidade e evidenciando o entrelaçamento intercultural para questionar relações de poder.

Considerações transitórias

Na observação do cotidiano da escola notamos que muitas atividades apresentam características de transdisciplinaridade, pois não se fixam rigidamente em disciplinas, mas extrapolam e transcendem conteúdos para trabalhar habilidades e o desenvolvimento integral de pessoas criativas. Notamos a preocupação da escola com o desenvolvimento individual e com a vida como um todo das crianças, inclusive com sua formação no espaço familiar, o que pode ser visto nos diálogos entre adultos e crianças e com as famílias.

Consideramos que é evidente uma visão transdisciplinar e transformadora na escola, tanto na dimensão intencional quanto nas vivências cotidianas. A proposta é formar integralmente as pessoas presentes na instituição por meio de atividades que integram diferentes dimensões e valorizam centralmente o ser humano. Elementos de culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas são tomados como pontos centrais para a construção de uma perspectiva educacional que transcende a disciplinaridade ao propor o trabalho com identidade e diversidade como eixo de todas as práticas. Entretanto, consideramos que a escola tem um caminho a percorrer no aprofundamento de suas bases teóricas e culturais de forma sistemática a fim de tornar ainda mais potentes as suas práticas.

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Ficou muito marcado em nossa percepção que a escola tem cotidiano, mas não tem repetitividade, monotonia; as cores são as mesmas, mas sempre há novas combinações. É como as notas musicais que são apenas sete, mas sempre tem reorganizações e novas possibilidades, novos ritmos, estilos, melodias, instrumentos e letras. Todo dia são as mesmas pessoas, os mesmos espaços, o mesmo tempo, mas são diferentes as criações, porque estas mesmas pessoas que se reorganizam todos os dias são diferentes entre si e por isto produzem coletivamente novas sinergias, novas diversidades a partir de sua pluralidade. De algum modo consideramos que não é que essa escola faça com que as crianças sejam curiosas, criativas e felizes, é que ela não atrapalha tanto o fluir da vida de cada uma delas, geralmente não abafa a potência criadora do fluxo corrente da vida, não tenta amarrar, manter presa a subjetividade a um padrão encaixotado; mas deixa fluir, abre portas para o fluxo e potencializa o viver, o sentir, o estar, o pensar e o ser que já são plurais. Simultaneamente há monotonia, monólogos e ranços da colonialidade que divergem do nível intencional e criam incongruências. Isto não para a busca pelo enfrentamento, mas promove estremecimentos importantes em meio às contradições.

Sobre os autores

JONATHAS VILAS BOAS DE SANT’ANA • Mestre em Educação, Linguagem e Tecnologias pela Universidade Estadual de Goiás. Graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual de Goiás. Participa do Grupo de Pesquisa em Rede Internacional Investigando Escolas Criativas e Inovadoras. Membro da Rede Internacional de Escolas Criativas – RIEC Brasil. Professor da educação básica na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. jonathasvilas@hotmail.com

JOÃO HENRIQUE SUANNO • Pós-Doutorado em Educação – 2014 - Universidade de Barcelona/ES. Doutor em Educação – 2013 – Universidade Católica de Brasília/DF. Mestre em Educação – 2006 - Universidad de la Habana/PUC-GO. Psicopedagogo – 1994 - UCG/GO. Psicólogo – 1991 - UCG/GO. Professor do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologias – IELT, da Universidade Estadual de Goiás. Professor titular efetivo e dedicação exclusiva da Universidade Estadual de Goiás – UEG. Memmbro da Rede Internacional de Escolas Criativas – RIEC Brasil. Líder do Grupo de Pesquisa em Rede Internacional Investigando Escolas Criativas e Inovadoras. suanno@uol.com.br

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