Governo Federal República Federativa do Brasil Ministério da Educação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Universidade Federal de Goiás

EM DEFESA DO DIREITO À EDUCAÇÃO ESCOLAR:

DIDÁTICA, CURRÍCULO E POLÍTICAS EDUCACIONAIS EM DEBATE

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SEÇÃO 1
AUTORES Alexandre Ferreira da Costa • Sarah Suzane Amâncio Bertolli Venâncio Gonçalves
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Ensaio sobre a (Des)Constituição das Posições de Sujeito no Contexto Político da Educação Brasileira Contemporânea

‘Por quê?’ (em suas muitas variações) é uma pergunta muito mais importante por ser feita do que pela expectativa de uma resposta. O simples fato de pronunciá-la abre um sem-número de possibilidades, pode acabar com concepções prévias, suscitar inúmeras e frutíferas dúvidas. Pode trazer, em sua esteira, algumas tentativas de respostas, mas, se a pergunta é poderosa o bastante, nenhuma dessas respostas se comprovará autossuficiente. ‘Por quê?’, como a intuição infantil, é uma pergunta que, implicitamente, sempre situa nosso objetivo além do horizonte (MANGUEL, 2016, p. 15).

1. Nenhum direito a menos na Zumbilândia?

Este texto surge da conferência de abertura do GT de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do VII Encontro Estadual de Didáticas e Práticas de Ensino, em 2017, cujo tema era “Didática, Escola e Políticas: Nenhum Direito a Menos. O evento ocorria à luz da constatação do desmonte ‘rápido e rasteiro’ de anos de reconstrução institucional da Educação Brasileira após o ‘golpe’ que derrubara a então presidenta Dilma Rousseff.

Partindo do tema do Encontro, na ocasião, e agora também, tomamos “ao pé da letra” o enunciado “Nenhum Direito a Menos”, naquilo que ele tem de recorrente, sua emergência em contextos de resistência, e no que tinha de novo: a denúncia do ataque às políticas populares de educação que se estavam consolidando. E por abordagem, optamos pela definição de elementos discursivos que formaram as condições de possibilidade de uma reflexão para um recorte tão amplo, tão complexo e, por que não dizer, tão doloroso.

Assim, foi necessário especificar de que ‘sujeitos’ se fala; em que contexto; o que se entende por ‘constituição’; qual é a ‘relação entre língua portuguesa e formação profissional’ para nós, e que importância isso tinha para o evento que se dirigia para a sociedade educacional organizada, lembrando a expressão de Demerval Saviani.

O conjunto de ‘posições de sujeito’ que abordamos são constituídas primariamente na ordem de discurso da Educação nacional, supostamente. São, obviamente ‘alunos’ e ‘professores’, mas também são os “feitores”, às vezes ingênuos, filhotes da tão propalada noção de biopoder de Michel Foucault. Referimo-nos aos novos agentes da educação, que se despem da figura do professor ou nunca o foram, sob a condição de ‘gestores’, ‘psicopedagogos’, ‘psicólogos’, ‘coaches’ e todos os economistas, sociólogos, filósofos e tais, que em condição “ex machina” nos dizem cotidianamente o que ser, fazer e falar, sem estar no lugar em que estamos. E, pela citação dos últimos, resumimos tudo o que é exterior à ordem discursiva da Educação, em um “sujeito midiático”, ‘consumidor’ e ‘reprodutor’ de enunciados sobre o que a educação deve ser, e que age como fiscal, policial e mesmo delator dos crimes que ora são atribuídos aos docentes brasileiros. São os zumbis virtuais da ética de Facebook, da estética de Instagram, da política de WhatsApp.

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Ironicamente, parece que uma das séries mais assistidas no mundo é Walking Dead, uma narrativa pobre que se repete à exaustão, reproduzindo todos os clichês narrativos possíveis, cuja invariável é a luta contra o “outro” que já não é mais humano. São homens, mulheres e crianças que se reduziram a zumbis. Num instante eram irmãos, esposas, amantes, pais ou amigos de alguém, e noutro, monstros que só podem e devem ser destruídos. Figurativamente, este é “contexto político da educação”, que não é só dela, mas que nela se mostra ostensivamente. A infecção que contaminou uma nação inteira de possíveis cidadãos, produzindo seres raivosos e irracionais, focados apenas em si mesmos, espalhou-se, como se sabe, em meio a protestos de rua catalisados pela luta contra o aumento de passagens de ônibus. Incialmente condenados pela mídia, foram logo apropriados por ela a serviço das forças conservadoras que agora nos governam e direcionados contra o governo de esquerda da época que, mal ou bem, estava no poder. Já sabemos do enredo: paralisação administrativa, desestabilização econômica, demonização política, golpe jurídico-parlamentar, violência policial e, para encurtar a descrição, apatia. Estamos nos reduzindo ao pathos da dicotomia ódio-apatia.

Reduzimos aqui, por necessidade de recorte, o cerne dessa formação de estratégias do golpe político recente a uma apropriação particular da noção de “banalização do mal”, de Hannah Arendt, postulada por ela para explicar a atitude dos cidadãos do nazismo alemão. Nossos conflitos foram reduzidos ao expurgo individual de uma mulher, que por acaso era presidenta do país, e de aí em diante, é do individual que a maioria das pessoas se pensa (e pensa o ‘outro’). Se foi necessário construir um “outro maligno” para efetivar o golpe, foi tanto mais produtivo deixar alastrar-se essa condição de possibilidade de reduzir a pó as noções pensamento participativo, de identidade na alteridade, de compreensão responsivo-ativa, para recuperar algumas noções bakhtinianas.

E por ilustração, caso queira ver ainda este fenômeno no particular, no “pessoal”, podemos citar um exemplo do avesso da “figura” que se vai forjando. Citemos uma personagem que fez e se fez no percurso histórico que agora se vai desmontando. Não há quem nas Letras não tenha lido, visto ou dialogado com o João Wanderley Geraldi, eminente linguista, militante da formação de professores no Brasil afora, teórico da fundamentação da noção de “análise linguística” como sucessora da decora prescritiva gramatical, posta nos já “falecidos” Parâmetros Curriculares Nacionais (expurgados pela BNCC). Atualmente, qualquer docente que se assemelhe a esse sujeito sem-álibi é, paradoxalmente, um zumbi aos olhos dos zumbis. Será atacado violentamente por multidões de agressores, haters, que se projetarão nele do modo que lhes restou: negação absoluta, irracional e violenta. Um ‘zumbi’ não reconhece posições de sujeito necessários ao exercício do ensino-aprendizagem (evidentemente dialógico e dialético). Um zumbi (qualquer pessoa assimilada: aluno, pai, colega, jornalista etc.) só reconhece “a coisa”: o outro que não é “ele” e que lhe faz “ver-se” no exercício de excedente de visão da alteridade. Qualquer “reflexo” é catalisador de um ódio irracional que, no fundo, é a negação de si mesmo, de poder escolher, de ter de escolher.

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Neste momento, portanto, é possível postular que a condição mesma do exercício docente já foi profundamente desconstruída pela simples proposição e propagação da Lei da Mordaça e da violência simbólica que se alastrou para dentro das escolas. Nova regularidade do “direito privilegiado de fala”, nova regularidade para o “tabu do objeto”, nova regularidade do ritual da circunstância, voltando a Foucault. Não há mais espaço para “transversalidades bolivarianas”, não há mais alunos e pais, apenas fiscais atentos para a manifestação do vírus no professor e dispostos a destruí-lo, como zumbi que é. Mesmo em movimentos de resistência e de contra conduta a divergência tem gerado estratégias eficientes de eliminação do outro.

A infecção da banalização do mal está entre nós. Há uma insatisfação atávica que se expressa por espasmos de ódio e violência simbólica e física. Parece que agora a expressão pós-moderna de “não-lugar” começa a fazer sentido, ainda que não aquele que queria. Estamos na disforia, em uma distopia pior que o “deserto do Real” de Matrix. Não há um lugar fora dela, não há o deserto externo. Estamos cercados por dentro, porque é de tempo, espaço e alteridade que somos feitos.

2. Sobre o contexto político-educacional contemporâneo: entre discursos, normas e resistência

Ao pensarmos em constituição, em formação de sujeitos, certamente, como educadores, nos amparamos em teorias e metodologias de ensino que orientam o desenvolvimento pleno das capacidades das pessoas. É possível que nos reportemos ao conceito de formação integral quando dialogamos com a comunidade escolar sobre a problemática da educação brasileira, sobretudo ao partimos, nessas reflexões, do atual contexto que vivemos. Importante destacar que essa formação é "balizada pelos direitos humanos e princípios democráticos" (BNCC, 2017, p. 59). Isso pode nos causar estranheza, assombro mesmo, principalmente nesta conjuntura política e midiática da Zumbilândia, em que tanto se debate sobre direitos humanos e democracia, com defesas, em outros tempos enxovalhadas, de que essas são lutas desnecessárias. Daí emergem discursos como aquele da militarização do Estado, via ditadura, via golpe, e também àquele na qual há suspensão, em um exame de âmbito nacional, da necessidade de prezar pelos direitos humanos em soluções para problemas sociaisEssa notícia, amplamente divulgada em veículos midiáticos, gerou problematizações nas redes sociais. A presidente do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia, suspendeu a regra de aplica nota zero à redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) que desrespeite os direitos humanos. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2017/11/04/redacao-do-enem-que-desrespeitar-direitos-humanos-nao-sera-zerada-definem-inep-e-mec.htm. Acesso em 20 fev. 2018.. Nesse embate de ideias, o mais recente documento do governo, direcionado à Educação Básica prossegue normatizando que em relação à formação integral é preciso considerar a "necessidade de desnaturalizar qualquer forma de violência nas sociedades contemporâneas, incluindo a violência simbólica de grupos sociais que impõem normas, valores e conhecimentos tidos como universais" (BNCC, 2017, p. 59).

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Ainda no contexto brasileiro atual, cuja agressividade a grupos sociais (considerados "minorias") se tornou comum nas redes sociais e em comentários dialógicos às notícias veiculadas na internet, também em conversas, em pronunciamentos oficiais e na propagação das ideias, o pensamento e a ação - naturalizados - de perpetuar 'direitos' de uma classe média que se enxerga como elite detentora do capital foram disseminados. Afinal, como explicar o massacre de uma tribo indígena da região do Vale do Javari, no Amazonas, ocorrido em agosto de 2017; e as matanças, presentes em noticiários, de mulheres, homossexuais, crianças e outros seres humanos, cujo sofrimento já não parece atingir os "cidadãos de bem", mais envolvidos em análises políticas que rebatem greves que lutam por direitos trabalhistas, em colocar esses grupos sociais como "vitimistas", "mimizentos" e nomear com outros termos pejorativos isso que perfaz a violência a que estamos sujeitos - na realidade da vida e nas redes.

E, nestes tempos, que seguem na contramão do que seria uma formação integral dos sujeitos, percebemos uma reviravolta na publicização - à la espetacularização, diga-se - de discursos de ódio. Certamente seria preciso uma apurada pesquisa de investigação, para coleta e análise de dados para mensurar em qual (ou quais) momento ocorre essa reviravolta, em que se parece lícito desrespeitar os direitos humanos e apagar a democracia também. Importante elucidar que nem sempre esses discursos, que fazem parte do contexto político atual em nosso país, estão destilando ódio de forma evidente, nem sempre a notícia emerge clara, tal qual foi a defesa feita pelo parlamentar Jair Messias Bolsonaro, que criticou o que chamou de "intervenção militar branda" ao Rio de Janeiro, em alusão ao decreto assinado pelo presidente Michel Temer em 16 de fevereiro de 2018, cuja sanção determina intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro. Esse decreto ainda tramitará no Senado, mas já passou a vigorar, perdurando até 31 de dezembro de 2018.

Em breves linhas, diante do problema da segurança pública desse estado, agora quem terá o comando da Secretaria de Segurança, Polícias Civil e Militar, Corpo de Bombeiros e sistema carcerário será o general do exército Walter Souza Braga NettoMais informações disponíveis em: https://g1.globo.com/politica/noticia/camara-aprova-decreto-de-intervencao-federal-na-seguranca-publica-do-rio-de-janeiro.ghtml.. Bem, Bolsonaro, como militar e político se pronunciou nas mídias, revelando indignação com os termos do decreto:

“No Haiti, você podia atirar. Aqui como vai ser?”

“Todo mundo diz que estamos em guerra. O Rio está em guerra. Mas que guerra é essa que só um lado pode atirar? Qualquer um do lado de cá, que tome uma medida de força, vai ter problemas depois na Justiça. Seja o policial militar, o civil ou o rodoviário federal”, acrescentou o presidenciável, para quem “o problema da segurança no Rio não vai ser resolvido por decreto presidencial, assinando um papel”BOLSONARO, Jair Messias. Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/02/bolsonaro-critica-intervencao-militar-rio-de-janeiro.html..

As opiniões desse parlamentar enunciam que ele é defensor do regime militar, o que se torna evidente quando recordamos sua fala no voto pró-impeachment da Presidente Dilma Rousseff, na qual enalteceu o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra por suas ações de torturador nos tempos da ditadura militar brasileira ao elucidar que esse homem seria o "terror de Dilma". Em outros tempos, o natural seria um assombro coletivo, um espanto diante de tamanha falta de respeito, contra um ser humano. Entretanto, nestes tempos zumbis, em que se torna urgente explicar o óbvio, o então deputado federal e hoje presidente brasileiro, ao ser submetido ao Conselho de Ética da Câmara, em decorrência de denúncia de quebra de decoro parlamentar por essa sua fala, volta a enaltecer Ustra, ao colocá-lo como herói nacional.

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O jornal Folha de São Paulo, em 31 de janeiro de 2018, veiculou notícia de que Bolsonaro tenta proibir a divulgação de pesquisa da Datafolha sobre a intenção de voto para eleição de outubro deste ano. A notícia prossegue informando que o parlamentar é o primeiro colocado nas pesquisas simuladas sem outro candidato, o Presidente Lula. Essa solicitação dele, de barrar a veiculação da pesquisa, esteve inclusive em tramitação no Tribunal Superior Eleitoral.Notícia completa em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/01/1954617-bolsonaro-tenta-barrar-na-justica-divulgacao-da-pesquisa.shtml. Acesso em 20 fev. 2018.

Ao analisarmos toda essa conjuntura política brasileira, lembramos que o pensamento de Foucault (2006) se direciona aos processos de objetivação e subjetivação na constituição do sujeito. Nessa perspectiva, o sujeito seria formado tanto pela história que molda sua identidade, portanto, está atrelado ao contexto histórico, à sua época; como pelos processos empreendidos para se compreender como sujeito ao, inclusive, tecer relações entre sujeito e objeto. Os processos de objetivação e subjetivação articulam-se e se complementam. Em sua obra A Hermenêutica, o filósofo descreve a noção grega e complexa de “cuidado de si mesmo”. Teoriza que “[...] cuidar de si mesmo implica que se converta o olhar (...) do exterior, dos outros, do mundo, etc. para ‘si mesmo’. O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento ao que pensa e ao que passa no pensamento” (FOUCAULT, 2006, p. 14). Ao exemplificar sobre as formas empreendidas nesse cuidado, pautado na máxima grega do “conhece-te a si mesmo”, ele menciona as práticas de “(...) meditação, as de memorização do passado, as de exame da consciência, as de verificação das representações na medida em que elas se apresentam ao espírito” (idem, ibidem, p. 15).

É curioso como quando nos reportamos ao passado de nosso país, com o tolhimento dos direitos humanos e a derrocada da democracia, pensarmos o contexto atual parece um tenebroso (ou temeroso, como queiram) dejà-vu. O clamor popular e parlamentar pela mudança de leis, que a tanto custo foi estabelecida, e aqui nos referimos à Constituição Cidadão, à Carta Magna Brasileira, que data 1988, encerrando um ciclo totalitário para começar um momento democrático, assombra também uma parte da população. Considerando os tempos tecnológicos, esse mesmo representante político postou em seu perfil pessoal na rede social Twitter um comentário em alusão à intervenção militar no Rio de Janeiro: “Sem mudarmos as Leis, que protegem os marginais, essa intervenção será apenas um remendo”.

Quanto às escolhas linguísticas desse comentário, vê-se como o uso de uma oração explicativa salienta um posicionamento a respeito do núcleo adjetivado “Leis” - como se todas as normativas oficiais servissem ao propósito enunciado de “proteger os marginais”. A opção de não usar uma subordinada restritiva, que pelo menos indicaria uma suspeita de existência de ‘algumas leis’ para ‘proteger os marginais’, mas o englobamento das Leis em tal adjetivação explicativa - e sintetizadas ainda pelo uso de uma letra maiúscula - demonstra a generalização destes tempos, cujas afirmações categóricas ganham cada vez mais espaço e os veículos jornalísticos são contestados, desacreditados e postos como ‘zumbis’, inimigos que precisam de combate. Amplia-se esse embate agora, partindo ainda da análise do comentário, para o campo legislativo.

Bolsonaro, seguindo os passos de outro político que também expressa bastante as suas opiniões em redes sociais, Donald Trump, deixa evidente, em vídeos amplamente veiculados, postagens e pronunciamentos, suas ideias a respeito da finalidade dos "direitos humanos", o que reforça o senso comum atual de que essa luta seria favorável para "bandidos".

Em uma linha mais tênue, digamos, mas não menos danosa, temos o ex-presidente Michel Temer deixando claro, em falas oficiais, o que pensa sobre o papel da mulher na sociedade. Como exemplo, citamos seu discurso em "homenagem" ao Dia da Mulher, no qual defende:

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Tenho absoluta convicção, até por formação familiar e por estar ao lado da Marcela [Temer], do quanto a mulher faz pela casa, pelo lar. Do que faz pelos filhos. E, se a sociedade de alguma maneira vai bem e os filhos crescem, é porque tiveram uma adequada formação em suas casas e, seguramente, isso quem faz não é o homem, é a mulher. (TEMER, Michel. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/08/politica/1489008097_657541.html).

Nessa fala, ele sequer menciona as diferentes atuações da mulher na sociedade, mas evidencia o papel como mãe e "do lar", esferas de atuações femininas que há décadas eram os únicos campos nos quais as mulheres poderiam atuar. Em cerimônia mais recente, seu discurso pretendeu elogiar uma piloto do avião presidencial, em um evento - em pleno século XXI - que dá sanção à mulher de ocupar qualquer cargo oficial da Marinha (salienta-se o século porque nos parece algo tão tardio!), ao defender que as mulheres estão ocupando diferentes profissões e culminando com um: "O que significa que a presença da mulher, além de ser de uma força extraordinária, também tem uma suavidade sensível, suavidade que todos podemos perceber".Notícia disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/em-cerimonia-temer-diz-que-mulheres-fazem-aterrissagem-mais-suave-que-homens-22206976.

Ainda nessa toada, de se trazer elementos desse contexto que vivemos para observação e análise, recordamos um registro fotográfico que "rodou o mundo" nas mídias que revelam a composição da política atual em ministérios em comparação com os líderes do governo anterior. Tais imagens contrapõe a pluralidade de representações etárias e de gênero na política da presidente Dilma e a homogeneidade de perfil dos ministros do presidente Temer.

Uma análise de tal contraponto de imagens foi feita pela professora Lola Aronovich, da Universidade Federal do Ceará, mulher que abdicando do seu papel restrito de "mãe" (ela não tem filhos) e "do lar" se volta a manter um blog e outras mídias para problematizar o contexto político atual e as relações existentes entre sociedade, cultura, ensino etc. Isso é, claro, em defesa dos direitos humanos e da democracia. Lola, por meio de sua conta pessoal do Twitter, em 29 de janeiro de 2018, faz com um comentário a respeito desses registros fotográficos no grupo de ministros dos citados governos: “Ter só ministro homem e branco é meritocracia, né? Deve ser por eles serem tão honestos e competentes...”.

Na conjuntura política contemporânea brasileira que - claramente - perpetua a dualidade de papéis entre mulheres e homens, e ampliamos:questiona-se como (e se) há diálogo a respeito entre de diferentes sexualidades, entre culturas e sociedades , se mostra na educaçãono âmbito educacional.? No contraponto de um discurso normativo que defende a formação integral com o contexto que pretende o apagamento da democracia e dos direitos humanos, balizadores dessa formação, o que nós, como educadores, fazemos para fomentar o embate de ideias e de práticas que denunciem e busquem a transformação dessa situação?

Convém estarmos alertas, já que na lógica do capital, viés econômico que endossa discursos e práticas segregatórios, os trabalhos "são produzidos não em função de sua 'utilidade' mas em função da troca, o que interessa, do ponto de vista educativo, não é o que seja de interesse dos que se educam, mas do mercado"(FRIGOTTO, 1989, p. 67). Neste contexto, a educação fica submissa aos (des)mandos do mercado, suprindo as suas necessidades e não necessariamente envolve formação integral das pessoas.

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Na perversa conjuntura política, nota-se que a escola aliada a tal ordem do discurso reduz a prática escolar a um fator de produção, a um valor econômico e, desta forma, adquire um papel crucial na condução de estratégias para o desenvolvimento econômico, no qual se busca a associação das qualidades pessoais do indivíduo (saber-ser) com a sua capacidade técnica (saber-fazer), o que lhe permite “ajustar-se às condições de uma sociedade em que as próprias necessidades de sobrevivência não estão garantidas” (SAVIANI, 2008, p. 437). Claro que isso está posto sob uma aparência crítica e progressista de uma educação que vai ao encontro dos anseios de liberdade e de participação nas decisões por parte daqueles que vivem do trabalho.

3. Eis que há esperança: na luta e com a luta

Muitas análises poderiam ser feitas aqui, sobretudo no que se refere às relações entre política-trabalho-educação, o que converge para as mudanças que estão acontecendo, como, por exemplo, a Reforma do Ensino Médio. Neste espaço, limitado por margens, talvez não caberia a entonação pretendida, por isso é preciso ressaltar, para não ser esquecido, a respeito de outro espaço que nos foi oportunizado (como educadores e cidadãos defensores da democracia): o VII EDIPE, ocorrido de 20 a 22 de novembro de 2017, cujo tema "Didáticas, Escola e Políticas: nenhum direito a menos" fomentou debates a respeito dessa conjuntura política, atualizada anteriormente aqui, que partiram da conferência realizada pelo professor Gaudêncio Frigotto, da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Não pode ser olvidado que os professores dessa instituição, desde 2017 enfrentaram uma situação absurda: atrasos salariais, que se delongaram por meses e acarretaram gravíssimos problemas de ordem financeira, emocional, física etcMais informações sobre essa problemática em: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/com-salarios-atrasados-professores-da-uerj-entram-em-greve-a-partir-desta-terca.ghtml. Acesso em 20 fev. 2018..

Frigotto, nessa fala, abriu o EDIPE tecendo essas relações entre política-trabalho-educação, defendendo como a escola brasileira, nesta conjuntura, expressa mais uma vez a dualidade da educação e porque não dizer da sociedade e do projeto político a que estamos sujeitos. Essa fala, não conformista, mas repleta de engajamento e de teor dialógico, corrobora com o pensamento que "a educação básica atua de modo diferenciado: para os primeiros, assume caráter propedêutico, a ser complementada com formação científico-tecnológica e sócio-histórica avançada" (KUENZER, 2007, p. 1165). Enquanto que "para os demais, assume o caráter de preparação geral que viabiliza treinamentos aligeirados, com foco nas diferentes ocupações em que serão inseridos ao longo das trajetórias laborais" (idem, ibidem).

Aqui, cabe retomarmos a epígrafe deste texto, uma citação manguelina, que enuncia a força do "por quê?" e se alinha ao pensamento de uma educação se que se volte à transformação do mundo, pela linha do questionamento e que se digladia com o oposto ideológico: da acomodação do mundo.

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Considerarmos, entretanto, que ainda há esperança, mesmo diante desse cenário político de cortes sofridos na educação pública federal e em outras instâncias responsáveis por oportunizar arte, cultura e melhores condições de vida ao povo. Há esperança ainda que tal contexto nos desfavoreça como professores, já que nos relegam a um lugar (que no pensamento 'deles' jamais deveríamos ter ousado sair) de personagens secundárias, coadjuvantes e também inimigos em muitas circunstâncias. Há esperança porque ainda temos nossas vozes para dialogar, nossas mentes para pensar em estratégias, ainda há a luta legítima e urgente e isso tivemos no EDIPE, no qual debatemos e renovamos nossas forças para dialogar sobre práticas de ensino, sobre teorias da linguagem, sobre as relações entre política e educação. E partindo de relatos de experiências, comunicações e pôsteres, professores e professores em formação de diversas partes do estado e do país, tiveram a oportunidade de trocar ideias, de fortalecer a luta, de discursar sobre a importância dos direitos humanos e da democracia na educação brasileira e, assim, de se empoderar para prosseguir, persistir e não desistir.

Sobre os autores

ALEXANDRE FERREIRA DA COSTA • Professor Adjunto da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG), Membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Coordenador do Grupo Portos, do CNPq. Doutor em Linguística pela Universidade de Campinas (Unicamp). Link do Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4763101P8. E-mail: alexandrecostaufg@gmail.com.

SARAH SUZANE AMÂNCIO BERTOLLI VENÂNCIO GONÇALVES • Servidora técnica-administrativa da Rede Federal de Educação do Instituto Federal Goiano (revisora de textos). Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da UFG. Link do Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4330104H9. E-mail: sarah.goncalves@ifgoiano.edu.br.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/a-base. Acesso em 20 fev. 2018.

FRIGOTTO, Gaudêncio. A produtividade da escola improdutiva: um (re) exame das relações entre educação e estrutura econômico-social capitalista. São Paulo: Cortez, 1989.

FOUCALT, Michel. A hermenêutica do sujeito. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

KUENZER, Acácia Zeneida. Pedagogia da Fábrica. 8. ed. São Paulo, SP: Cortez, 2007.

MANGUEL. Uma história natural da curiosidade. Trad. Paulo Geiger. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

SAVIANI, Dermeval. A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas. Campinas, SP: Autores e Associados, 2008.